Olhar de Cinema promove, sob chuva e frio, abertura apoteótica na Ópera de Arame

Por Maria do Rosário Caetano, de Curitiba

Há muito um festival brasileiro não assistia a sessão inaugural tão apoteótica. E quem conseguiu isso foi um dos festivais mais cabeçudos do país, o Olhar de Cinema curitibano.

A badaladíssima Ópera de Arame, um dos cartões postais da capital paranaense, viu seu imenso teatro (quase 1.600 lugares), destinado historicamente a espetáculos musicais e cênicos, abarrotado. Nem a chuva, nem o frio (nove graus) impediram os curitibanos de sair de casa para assistir ao filme “Casa Izabel”, de Gil Baroni, aplaudido com euforia. Os atores, vindos do teatro local e nucleados em torno de Luís Mello – outrora estrela da companhia de Antunes Filho e, depois, astro de novelas globais – foram aplaudidos de pé.

Tudo apontava para uma jogada de risco. “Essa é primeira sessão de cinema a ser realizada aqui na Ópera de Arame”, avisou o diretor do festival, Antônio Júnior, à imensa plateia. Para em seguida pedir compreensão, caso “imagem e som não saíssem a contento”. Afinal, “trata-se de uma experiência”, pois “estamos testando esse espaço tão caro à vida cultural curitibana, que não contou em seus 31 anos de existência com nenhuma sessão cinematográfica”.

Apesar da chuva e do frio, a casa só via sua lotação aumentar. E, ao chamar ao palco Jason Naud, jovem cônsul canadense em São Paulo, a noite só ganhou em alegria e descontração. O diplomata comparou o frio curitibano ao de seu país, divertiu-se com sua (a dele mesmo!) pronúncia da língua portuguesa e convidou a todos a prestigiarem a Mostra Foco, destinada a apresentar aos brasileiros um panorama do novo documentário produzido no Quebec. O Canadá de expressão francesa é o grande parceiro do Olhar de Cinema em sua edição de número 12.

Quando o também jovem Gil Baroni, performático como ele só, subiu ao palco com sua equipe, causou o esperado frisson. Trajava descolado terno cor-de-rosa, echarpe amarelo-ouro e cabelos longos e oxigenados. Ao apresentar ao público seu segundo longa-metragem, “Casa Izabel” (o primeiro foi o igualmente queer “Alice Jr”), Baroni contou que recebera da atriz Laura Haddad, o convite para assumir a direção. De cara ela lhe avisara que “o elenco já estava escalado”. Ele não poderia alterá-lo. E que “o roteiro seria do dramaturgo Luiz Bertazzo”.

Baroni, empolgado com a história (homens do establishment paranaense, incluindo influente militar, praticantes de crossdresser na Curitiba dos anos 1970), topou na hora. Afinal ia dirigir a nata do teatro paranaense e trabalhar com o mesmo roteirista de “Alice Jr”.

Bertazzo partiu, ao estruturar a narrativa, de “Casa Susanna”, livro de fotografias norte-americanas, que entusiasmara Laura Haddad, atriz e preparadora de elenco do futuro “Casa Izabel”. O livro-álbum dera origem a uma peça de teatro (“Casa Valentina”) montada em Nova York, em 2014. E ao documentário de Sebastian Lifshitz, que passou pelo Festival de Veneza, ano passado.

Na manhã dessa quinta-feira, 15 de junho, a equipe de “Casa Izabel” participou de conversa com o público e com a imprensa. Bertazzo contou que contextualizou a história dos crossdressers norte-americanos ao Brasil, com total liberdade. Retirou unicamente das imagens do livro a inspiração que lhe serviu como ponto de partida. Não se inspirou nem na peça nova-iorquina, nem no documentário estadunidense, que aliás foi realizado depois do roteiro e filmagens de “Casa Izabel”.

Como Bertazzo preparou o primeiro tratamento da trama em 2018, ano do triunfo de Bolsonaro e da extrema-direita nas eleições presidenciais brasileiras, sentiu que os anos mais duros da ditadura militar constituíam-se como tempo histórico ideal para “Casa Izabel”. E a ele – registre-se – Bertazzo acrescentou referências livres aos debates que marcaram o Brasil dos anos Dilma e Temer, o breve, aqueles que prepararam a era bolsonarista. Discute-se o uso de presidente ou presidenta, entre outros faits-divers do período.

O filme foi realizado em uma única locação – mansão situada em São José dos Pinhais – durante 15 dias e com orçamento baixíssimo (um edital de R$350 mil somados a mais R$150 mil para sua finalização e aquisição de direitos da trilha sonora, que inclui Elza Soares e Tim Maia). Mais barato ainda que “Alice Jr” (R$805 mil).

A trilha de “Casa Izabel”, aliás, é um dos pontos altos do filme. Seus criadores, Fábio Peres e Jean Gabriel, assinam a música incidental, banhada em psicodelia e ruídos perturbadores. A ela somam-se as referidas canções de Elza (a benjoriana “Mas que Nada”) e Tim (“Você”), mais “Não Obedeço”, na voz de Roseane Santos, “O Último Desejo”, de Noel Rosa (maltratado pela voz de uma das personagens), composições de Chiquinha Gonzaga e clássicos eruditos, executados por crossdresser (o pianista clássico Jeferson Ulbrich), uma das frequentadoras da Casa Grande Isabel.

O ator Luís Mello, que na noite inaugural na Ópera do Arame avisaria, sutil e subliminarmente, ao imenso público, que se preparasse para incômodos do filme (não uma simples comédia, mas uma narrativa em diálogo com o thriller e o horror), contou – na conversa com o público – que em “Casa Izabel deu-se o encontro de duas gerações de atores curitibanos. Atores que “embarcaram com imensa entrega num jogo marcado pela estranheza”. Elogiou a “trilha maravilhosa” e revelou fascinante comentário de Antunes Filho sobre atores do Sul do Brasil.

“Gosto dos atores do Sul” – disse o grande encenador – “porque eles parecem normais, mas enlouquecem onde devem enlouquecer, no palco”. Mello lembrou, também, uma das referências do elenco do filme, a peça “Orquestra de Senhoritas” e brincou com quem chamou os praticantes de crossdresser de ”Casa Izabel” de “lindas senhoras”.

“São homens horríveis”, ponderou. “Quem chega à Casa Izabel, caso do novato Rivelino/Regina (interpretado por André Mosqueto) e depara-se com aquelas personagens vestidas de mulher, leva um susto e com toda razão. Elas nos remetem a nossas avós, tias, vizinhas, à mulher do prefeito”.

E coube ao próprio Luís Mello e ao ator Sidy Correa (o militar que se traveste na mandona Beth) a mais incrível revelação do debate: ambos são oficiais do Exército (tenentes da reserva). Sim, ambos eram estudantes universitários quando chegara a hora de prestar o serviço militar. As Forças Armadas facultavam a eles frequentar o CPOR (Centro de Preparação de Oficiais da Reserva). “Foi o que fizemos”, contou Sidy. Ele permaneceu por seis anos na instituição militar. Tinha, portanto, sofisticado know-how para interpretar Beth. “Minha personagem apavora-se quando sente o risco de ser ele, um homem casado, descoberto como praticante de crossdresser na Casa Izabel”.

Tal perigo, o impele a adentrar o salão da Casa Izabel, depois de telefonema trocado com a esposa, marchando como um militar. “O público percebeu esse detalhe da minha interpretação”.

Mello completou as reminiscências militares do colega: “eu ia fardado para os ensaios de meu grupo de teatro, naqueles tempos do CPOR”.

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