Festival de Vitória premia, em noite de discursos intermináveis, o longa cearense “Represa” e o curta “Ramal”
Por Maria do Rosário Caetano, de Vitória-ES
Os júris das duas principais mostras competitivas da trigésima edição do Festival de Cinema Brasileiro de Vitória fizeram a coisa certa. Apostaram em filmes de empenho artístico e inéditos (ou quase).
O longa cearense “Represa”, de Diego Hoefel, foi o escolhido (“o eleito”) da atrevida e corajosa trinca julgadora, formada com os cineastas Viviane Pistache, Júlia Katharine e Lírio Ferreira. Não houve nenhum distributivismo. Dos sete prêmios em disputa, “o eleito” conquistou mais três de primeira linha (direção, roteiro e fotografia), além de menção honrosa para o guia turístico jaguaribense Gilmar Magalhães, em sua descolada e cativante estreia como ator.
No terreno dos curtas-metragens, os favoritos eram os ultrapremiados “Remendo”, de Roger Ghil, a Gegê, e “Big Bang”, de Carlos Segundo (este premiado inclusive com o Pardino de Ouro, em Locarno, na Suíça). Mas o júri, formado com Safira Moreira, André Dib e Marcos Carvalho, resolveu renovar, na medida do possível, a premiação e valorizar o ótimo “Rampa”, de Higor Gomes, produzido em Sabará, município mineiro partido ao meio (austera cidade dormitório de BH e berço esplêndido da arte sacro-barroca brasileira). O curta, que chegou ao circuito dos festivais três meses atrás, venceu o Olhar de Cinema curitibano em sua categoria.
“Represa” conta, com economia de recursos, pegada documental, ótimo elenco e fotografia calorosa, a história de um gaúcho, filho de mãe cearense, que chega a Nova Jaguaribara. A cidade, no sertão do Ceará, sucede a velha Jaguaribara, inundada por águas represadas em imenso açude. O projeto hídrico não deu muito certo. O lago, fruto de ambiciosa engenharia, perdeu parte de suas águas e começou a revelar vestígios de velhas edificações. O “forasteiro” gaúcho chegara ao Nordeste, porque herdara terreno da mãe. Ao procurá-lo em solo desolador descobrirá que tem um irmão (pelo lado materno), portanto também herdeiro. E que esse irmão exerce o ofício de guia turístico. Leva pessoas às águas da represa para passeios de barco e prática da pesca. A relação entre eles será tensa.
O público descobrirá, nos sintéticos 77 minutos da narrativa, que Gilmar Magalhães, guia turístico na vida real, é um personagem cativante, inventivo (vide a criatividade de seus figurinos temáticos) e emissor de diálogos saborosos.
O sabarense “Ramal” também brilha pela síntese. E pela potência de suas imagens, montagem nervosa e pegada documental. Trata-se de ficção que desenvolve-se em torno de cinco personagens. Todos motoqueiros dedicados, seus finais de tarde, à pratica do “grau” (arriscadíssimas manobras com a roda traseira de suas motos). O fazem num viaduto semi-desativado de estrada sabarense, sob o qual passam composições de longos comboios carregados de minério de ferro extraídos das montanhas de Minas.
O curta mineiro desenha retrato caloroso (e cúmplice) da paixão desses jovens machos pela prática do perigoso “esporte”. Não se verá figura feminina na narrativa. Para Higor Gomes, o que os rapazes fazem não constitui exercício tóxico de masculinidade. Ele os vê como jovens periféricos, que buscam atividade de lazer em área carente, aprofundam amizades e tentam fazer do “grau” um esporte aprovado, quem sabe pelo Comitê Olímpico (como aconteceu com o skate).
A mostra Foco Capixaba elegeu “Mångata – Todas as Fases da Lua”, de Marcella Rocha, como o melhor curta realizado no Espírito Santo. O filme, um documentário de narrativa bastante livre, aborda com profusão de metáforas o transtorno bipolar (e, também, a mania e a depressão). E brotou de vivências e experiências de sua própria autora, a jovem Marcella, diagnosticada como bipolar.
O Canal Brasil, homenageado pelo Festival de Vitória por seus 25 anos de criação e serviços prestados ao cinema brasileiro – seja com tela de exibição, seja como produtor ou coprodutor de 400 longas-metragens –, premiou o curta capixaba “O Último Rock”, de Diego de Jesus. O filme recebeu, além de belo troféu-móbile, prêmio no valor de R$15 mil e exibição garantida na programação do canal por assinatura.
O cineasta Rodrigo de Oliveira, diretor do longa-metragem convidado para a noite de encerramento (“Lô Borges – Toda Essa Água”), evocou os 25 anos do Canal Brasil, emissora que lhe serviu como vitrine ao exibir seus primeiros filmes. O realizador capixaba festejou, também, os 30 anos do Festival de Vitória. Afinal, foi numa sessão do evento, assistindo ao filme “Madame Satã”, de Karim Aïnouz, que ele resolveu tornar-se um diretor de cinema. A fala de Rodrigo foi sintética, articulada e potente.
O Festival de Vitória concentra sua artilharia na difusão do curta-metragem (foram exibidos mais de 80 títulos espalhados por onze mostras). Por sorte, o evento não promove “reforma agrária” de prêmios (nem para curtas, nem longas). Para ficar em um exemplo: há um único prêmio para intérprete (ao invés dos tradicionais atriz e ator principais e coadjuvantes).
O que o comando do festival, o mais identitário do país, parece não conseguir é evitar agradecimentos intermináveis. Equipes inteiras sobem ao palco para agradecer uma láurea (às vezes atribuída a um único técnico) e todos danam-se a falar, como se não houvesse amanhã. Alguns fazem palestras sobre a concepção de seu filme, como se estivessem num pitching ou numa aula de cinema. Outros dedicam-se a digressões sobre assuntos que nada têm a ver com o momento, ou seja, com uma cerimônia de premiação.
Por isso, a noite festiva de entrega dos Troféus Vitória, que poderia reduzir-se a 50 minutos, estendeu-se por mais de duas horas. E proliferam discursos religiosos (como o da melhor intérprete de longa, Mel Rosário), de militância política (como o do desenvolto pai e representante da cineasta Eliza Capai, detentora do prêmio de contribuição artística por “Incompatível com a Vida”) ou lacrimosos-apelativos como o de Sassá Carvalho, tema do curta “Arrimo”, de Rogério Borges.
Confira os vencedores:
Longa-metragem
. “Represa” (CE): melhor filme, diretor (Diego Hoefel), roteiro (Aline Portugal, Diego Hoefel, Maurício Grabowski), fotografia (Daniel Correia), menção honrosa de interpretação (Gilmar Magalhães)
. “Toda Noite Estarei lá”, de Suellen Vasconcelos e Tati Franklin (ES): melhor atriz (Mel Rosário), melhor filme pelo júri popular
. “Incompatível com a Vida”, de Eliza Capai (RJ): melhor Contribuição Artística
Curta-metragem brasileiro
. “Ramal”, de Higor Gomes (MG): melhor curta
. “Remendo” (ES): melhor direção (Roger Ghil), melhor filme pelo júri popular
. “Deixa” (RJ): melhor direção (Mariane Jaspe)
. “O Último Rock”, de Diego de Jesus (ES): Prêmio Canal Brasil, melhor interpretação (Ana Clara Barros Barcelos)
. “Escasso”, de Clara Anastácia e Gabriela Gaia (RJ): melhor roteiro (Clara Anastácia)
. “Procuro Teu Auxílio para Enterrar um Homem”, de Anderson Bardot (ES): melhor fotografia (William Rubinho)
. “Mãri – A Árvore do Sonho”, de Morzaniel Iramari (RR): melhor contribuição artística (para Davi Kopenawa e aos Yanomami)
. “Amei Te Ver”, de Ricardo Garcia: melhor curta do Festivalzinho
. “Os Animais Mais Fofos e Engraçados do Mundo”, de Renato Sircilli: melhor curta da mostra Quatro Estações
. “Ferro’s Bar”, de Aline A. Assis (SP): Prêmio do Júri Popular de melhor curta da Quatro Estações
. “Mångata – Todas as Fases da Lua”, de Marcella Rocha (ES): melhor curta da Mostra Capixaba
. “O Passarinho Menino”, de Ursula Dart (ES): Júri Popular de melhor curta (Foco Capixaba)
. “Capuchinhos”, de Victor Laet: melhor filme, Júri Popular (mostra Corsários)
. “Desmonte” de Clara Pugbayon e Hugo Reis: melhor curta (ex-aqueo) da Mostra Corsária.
. “No Início do Mundo”, de Gabriel Marcos: melhor filme na mostra Outros Olhares
. Arrimo, de Rogério Borges: Júri Popular – Novos Olhares
. “Lei da Mordaça”, de Isabella Vilela: melhor filme na mostra Mulheres no Cinema
. “Azul da Cor do Mar”, de Natália Dornelas: Júri Popular – mostra Mulheres no Cinema
. “Mergulho”, de Marton Olympio: melhor filme – mostra Cinema e Negritude
. “Firmina”, de Beatriz Barreto: melhor filme – mostra Cinema e Negritude
. “Avôa”, de Lucas Mendes: menção honrosa – Cinema e Negritude
. “Copo de Silêncio”, de Farofa Sintética: melhor videoclipe
. “Cornélios”, de Hecthor Murilo e Patrick Gomes: Júri popular
. “Vãhn Gõ Tõ Laktãnõ”, de Barbara Pettres, Flávia Person e Walderes Coctá Priprá – mostra Cinema Ambiental
. “Memórias do Fogo”, de Rita de Cássia Melo, Leandro Olímpio e Irineu Cruzeiro Neto – mostra Cinema Ambiental
. “La Purse”, de Gabriel Nóbrega e Lucas René (mostra Cinema Fantástico)
. “Encruzilhadas do Caos”, de Alexandre S. Buck (Júri Popular- Cinema Fantástico)