“Meu Nome é Gal” mostra, com olhar feminino, os primeiros anos da tímida cantora baiano-tropicalista
Por Maria do Rosário Caetano
“Meu Nome é Gal”, longa ficcional comandado por Dandara Ferreira e Lô Politi – e protagonizado por Sophie Charlotte –, chega nesse feriado de 12 de outubro aos cinemas brasileiros.
A expectativa de que o filme poderá manter ótimo diálogo com o público levou a poderosa distribuidora Paris Filmes a projetar avantajado número de salas: 500, se possível. E em todos os horários, vespertinos e noturnos.
Será que vai dar certo? O filme de Dandara e Politi vai levar o público, tão esperado pelos produtores brasileiros, de volta aos cinemas?
Difícil prever. Gal Costa, a “Divino-Maravilhosa” musa tropicalista, voz de cristal, homoafetiva discreta – além de amiga devota dos camaradas Caetano, Gil, Macalé, Wally Salomão, Rogério Duarte, Capinam e Tom Zé – morreu aos 77 anos, onze meses atrás (no dia nove de novembro do ano passado).
Existem razões para temer que o filme não se transforme em sucesso de bilheteria?
Sim, porque a cidadã e artista Maria da Graça Costa Penna Burgos, a Gracinha, era discreta demais. Nunca deu declarações espalhafatosas aos meios de comunicação, nunca expôs sua vida pessoal, nunca provocou um escândalo que fosse. Até quando, já madura, expôs os peitos nus em show dirigido por Gerald Thomas, o fez com tamanha elegância, que não chocou nem as fatias mais tradicionais de seu público.
E por que, no polo oposto, há quem aposte que o filme conseguirá atrair significativa soma de espectadores (500 mil, como “Elis”, de Hugo Prata)?
Porque nossa música popular é historicamente um dos mais sólidos pontos de atração do público brasileiro. Desde as chanchadas e os filmusicais da Atlântida. E porque os atores dão conta do recado.
Sophie Charlotte se entrega de corpo e voz (sim, ela canta) à personagem e tem bom desempenho. Camila Márdila faz uma Dedé Gadelha, primeira mulher de Caetano Veloso, convincente. E a veterana Chica Carelli, que incorpora Dona Mariah, mãe de Gal, rouba todas as cenas em que aparece.
Do elenco masculino, o destaque cabe a Luís Lobianco, que interpreta o divertido empresário Guilherme Araújo. Os outros (os intérpretes de Caetano, Gil, Wally etc.) não brilham, mas não comprometem. O filme, registre-se, é das mulheres. Além de Gal, protagonista onipresente, destacam-se Dedé Gadelha e Dona Mariah.
O filme começa na segunda metade da década de 1960, quando Maria da Graça, a Gracinha, desembarca no Rio, vinda da Bahia. Faz os primeiros testes para cantar na TV. Seu nome exige mudança, adequação. A nova marca artística é escolhida coletivamente. O grupo tem Guilherme Araújo à frente. Para ele, Maria da Graça “é nome de cantora de fado”.
O prenome aprovado desagradou a Caetano Veloso – ele lembrou que Gal era abreviatura de General. E Costa, mesmo sendo sobrenome verdadeiro da cantora, poderia evocar Costa e Silva. Em tempo de regime militar, tudo era perigoso. Mas Gal Costa – sintético e sonoro – deu muito certo.
Maria da Graça, ao chegar ao Rio, vai morar com os amigos baianos no Solar da Fossa, pensão muito livre e acolhedora. Dedé, amiga de infância, e Caetano são seus esteios. Gal grava um disco com Caetano. Mal o vinil aparece, e o compositor já garante ao jornal impresso que “está superado”. Ele tem planos bem mais ousados. Os artistas que engendram a Tropicália cercam a tímida Gal Costa de carinhos e atenções.
Gal vive seus primeiros amores em solo carioca. Tem um affair rápido com Rogério Duarte e inicia relação homoafetiva com a amiga Lélia. A revolução comportamental dos anos 1960 está em curso. Mas, no campo político, a barra pesa. O regime militar endurece a caça aos dissidentes, escorado no Ato Institucional número 5 (imposto ao país em 13 de dezembro de 1968).
Caetano e Gil são forçados ao exílio em Londres. Gal, que estava morando em São Paulo, resolve, incentivada por Wally Salomão (George Sauma), regressar ao Rio e marcar presença como a voz dos amigos exilados. E dos que aqui ficaram, como Wally Salomão, que compõe em parceria com Macalé, a arrebatadora “Vapor Barato”.
O show (e disco, gravado em outubro de 1971) “Fa-Tal – A Todo Vapor” estoura e faz de Gal a musa máxima da contracultura. Ver seu show era um ato de resistência, programa obrigatório da juventude, em especial de hippies inquietos. Ela mesma, com longos cabelos frisados, saias e bustiês de seda ou algodão indiano, justificava sua condição de dona das dunas do barato. A cannabis temperava as tardes e pores-do-sol no mar atlântico, altura do píer de Ipanema.
O filme terminaria nesse momento. Mas a inesperada morte da artista levou as duas diretoras a acrescentar um epílogo: imagens da artista, em décadas de maturidade, cantando em diversos palcos. A “Vaca Profana” de divinas tetas é vista, então, em corpo e voz verdadeiros. Imagens documentais. Um tributo. (Registre-se o bom uso que o filme faz de material de arquivo para contextualizar o tempo histórico recortado pela narrativa).
Que ninguém espere uma cinebiografia daquelas que vão do nascimento ao túmulo. Da infância, só veremos um fragmento – Gracinha educando, intuitivamente, sua voz, fazendo experimentos acústicos com uma grande caçarola de alumínio. Nada da juventude, nem dos inícios no Teatro Vila Velha soteropolitano, tempos do “Nós, Por Exemplo”.
Gal Costa quis – ela aprovou o roteiro, mas não teve tempo de ver a montagem final – um filme sobre seis ou sete anos de sua carreira que duraria quase seis décadas (exatos 57 anos). Que ninguém espere as imagens de “Gal Tropical”, quando a grande cantora trocou as roupas hippies por vestido de grife (de Guilherme Guimarães?) vermelho (com evocação refinada de Carmen Miranda). Aquele que expunha, com fendas laterais, as belas pernas da discreta musa homoafetiva. Nos cabelos, uma rosa vermelha e outra amarela. Tudo imortalizado na rubra capa de seu décimo elepê.
Na trilha sonora de “Meu Nome é Gal” estão “Fruta Gogoia”, “Baby”, “Divino Maravilhoso”, “Eu Vim da Bahia”, “Alegria, Alegria”, “Coração Vagabundo”, “Mamãe, Coragem”, “Vaca Profana”… e, de Erasmo e Roberto, “Meu Nome é Gal”. Algumas na voz de Sophie Charlotte. Outras no registro cristalino de Gal Costa.
Meu Nome é Gal
Brasil, 2023, 88 minutos
Direção: Dandara Ferreira e Lô Politi
Roteiro: Lô Politi, Maíra Buhler e Mirna Nogueira
Elenco: Sophie Charlotte (Gal), Camila Márdila (Dedé Gadelha), Chica Carelli (Dona Mariah), Rodrigo Lelis (Caetano Veloso), Dan Ferreira (Gilberto Gil), Luis Lobianco (Guilherme Araújo), George Sauma (Wally Salomão), Dandara Ferreira, a diretora (Maria Bethânia), Cláudio Leal (Torquato Neto), Fábio Assunção (diretor de TV), Elen Clarice (Lélia), Caio Scot (Rogério Duarte), Pedro Meirelles (Tom Zé), Liza Schechtmann (Sandra Gadelha)
Fotografia: Pedro Sotero
Direção de Arte: Juliana Lobo, Thales Junqueira
Trilha Sonora: Otavio de Moraes
Montagem: Eduardo Gripa e Eduardo Serrano
Produtores associados: Wilma Petrillo, Dandara Ferreira e Jorge Furtado
Produção: Marcio Fraccaroli, Lô Politi, André Fraccaroli, Veronica Stumpf
Distribuição: Paris Filmes
FILMOGRAFIA
Lô Politi
2023 -“Meu Nome é Gal” (ficção)
2022 – “Sol” (ficção)
2021 – “Alvorada”, em parceria com Anna Muylaert (doc.)
2015 – “Jonas” (ficção)
Dandara Ferreira
2023 – “Meu Nome é Gal” (longa ficcional)
2017 – “O Nome Dela é Gal”, série documental para a HBO