Fotógrafo e capista do “Clube da Esquina” viveu como devoto das imagens e sons da música brasileira

Por Maria do Rosário Caetano

Se fôssemos convidados a escolher um feito marcante da trajetória do fotógrafo pernambucano Carlos da Silva Assunção Filho, o Cafi — tema do longa documental de Lírio Ferreira e Natara Ney, nos cinemas a partir dessa quinta-feira, 16 de novembro — decerto escolheríamos a capa do disco “Clube da Esquina”. Aquela feita com a imagem de dois meninos — um preto, de tênis, e um branco, descalço. Os dois de cócoras numa beira de estrada. E com um fio de arame, com farpas, esticado ao fundo, único detalhe destoante do cenário bucólico.

Embora Cafi (Recife, 1950 – Rio de Janeiro, 2019) tenha realizado milhares de imagens e 300 capas de discos (18 só para Nilton Nascimento), foi a do “Clube da Esquina” que lhe garantiu a posteridade. Que transformou-se em síntese definidora de suas cinco décadas de intenso labor dedicadas à cultura brasileira.

Durante um bom tempo, Lírio Ferreira, conterrâneo de Cafi, percorreu locações em Recife, Olinda, Rio, Araras, São Paulo e Belo Horizonte para encontrar alguns dos companheiros de estrada de seu personagem. E também para colocá-lo em diálogo com a coreógrafa Débora Colker, sua ex-mulher e mãe de seus filhos, que apesar dos percalços, o vê carinhosamente como um grande amigo e eterno “meninão”.

Outro amigo do peito é Jards Macalé. Os dois, fotógrafo e compositor, conversam, trocam lembranças. De Macau, Cafi recebe até um conselho: que pare de fumar. Que deixe o cigarro, não aquele “unzinho”. Aquele não há de fazer mal algum.

O fotógrafo pernambucano tinha problemas cardíacos, necessitava mudar de hábitos. Morreu aos 68 anos, de infarto, no Arpoador carioca, em pleno Réveillon de 2019. Para tristeza das centenas de amigos que deixou. Caso de Alceu Valença, dos companheiros das farras carnavalescas do Siri na Lata, em Olinda, de “frequentadores-criadores” do Clube da Esquina (Ronaldo Bastos, Lô, Márcio, Telo e Marilton Borges), do encenador José Celso Martinez Corrêa, do fotógrafo Miguel Rio Branco, do poeta Chacal e do performer Cabelo. Todos presentes no filme que Lírio realizou em parceria com a montadora Natara Ney. E que o mais devoto dos criadores do Árido Movie define, com precisão cirúrgica, como “um road-movie documental sobre o olho, a câmera e o firmamento”. Sim, porque Cafi e Lírio são loucos de pedra pelo céu recifense, com suas “nuvens muito baixas”.

“Cafi” (lê-se Cafí) segue as mesmas pegadas de “Cartola – Música para os Olhos” (parceria com Hilton Lacerda) e de “O Homem que Engarrafava Nuvens”, este sobre o compositor Humberto Teixeira. Ou seja, troca o documentário de “cabeças-falantes” pelo registro poético-cinematográfico, aquele dos encontros, das imagens e sons livres, associativos. Perambulando com sua máquina fotográfica, Cafi revisita o Maracatu e paisagens diversas de seu Nordeste natal, os amigos de Olinda e, como não poderia deixar de ser, os colegas do Clube da Esquina.

Nos momentos próximos ao final do filme, Lírio e Natara — que abriram sua trama com imagens oftalmológicas (Cafi submetido ao escrutínio de aparelhos médicos) — entram em diálogo direto com “O Homem e sua Câmara” (Dziga Vertov, 1929). Aceleram o ritmo (alucinando-o) da narrativa e enaltecem imagens metalinguísticas, inclusive fragmentos do experimento do gênio soviético.

“Cafi”, o filme, é inquieto como seu personagem, um amante apaixonado por seu país, pela cultura vinda dos extratos sociais menos favorecidos (caso do Maracatu) e sua prodigiosa música popular, que vai de Assis Valente a Macalé, de Dorival Caymmi a Bethânia, de Milton Nascimento à família Borges, desaguando em aliciantes hinos carnavalescos.

Às vezes místico, Cafi conta histórias estranhas. Numa delas — assegura — fotografou grupo de Maracatu, daqueles que se vestem com roupas bordadas em mil cores e colocam um cravo sagrado na boca. As imagens resultaram, para seu espanto, pretas. Danilo Caymmi apresentou o fotógrafo ao pai, Dorival, e este encaminhou Cafi ao terreiro baiano de Mãe Stella de Oxossi. Nunca mais o problema se repetiu. Dali em diante, as novas fotos vieram todas banhadas em cores plenas.

A música entrou na vida de Cafi quando Turíbio Santos, namorado de irmã do fotógrafo, se preparava, ao violão, para concurso de grande importância. Vendo o jovem músico ensaiar oito horas por dia, Cafi conheceu a música de Heitor Villa-Lobos e outros mestres e até quis aprender violão. Mas sua maior paixão era mesmo a fotografia, substituta do pintor que ele ensaiara ser.

Fotografou Alceu Valença com uma flor na boca (não o cravo dos Maracatus, mas o gesto evocava a origem). Noutro, com os óculos e referências ao cangaceiro Lampião. Ambas viraram capas de discos do cabra de São Bento do Una.

Milton Nascimento não gostava de se ver nas capas de seus discos-solo, nem nos coletivos (como o “Clube da Esquina”). Quando bateu os olhos na foto do menino preto e do menino branco, numa estrada de terra, decidiu na hora: “é essa!” Levaram a decisão à gravadora (Odeon). O cara, que deveria aprovar a escolha, implorou por algum escrito sobre a foto. Ao menos a expressão “Clube da Esquina”, quem sabe somada ao nome de Milton.

Nada feito. A trupe liderada pelo astro de “Travessia” concedeu em colocar as informações solicitadas na contracapa. O que foi feito. Mas a capa com a foto, captada sem nenhum “ensaio” por Cafi, pegou. Até os lojistas a expunham nas vitrines, em detrimento da contracapa informativa.

Os irmãos Lô e Márcio Borges entram em cena para o momento comédia do filme de Lírio e Natara. Gravar com Lô — desde já candidato a “melhor ator de doc-comédia”, por seu desempenho nos filmes “Nada Será Como Antes”, “Lô Borges – Toda Essa Água” e “Cafi” — resulta em diversão garantida. Paga qualquer ingresso. Ele gosta de contar histórias de um adolescente distraído, paparicado pela família e por Milton Nascimento. Ou seja, ele mesmo. No filme “Cafi”, Lô conta que durante a chamada de alunos presentes em sala de aula, a professora enunciou o nome “Salomão Borges”, herança do pai. O garoto não registrou sua presença, pois acostumara-se de tal forma ao carinhoso apelido Lô, que não se sentiu identificado como SaLÔmão.

A história do “Disco do Tênis” é contada com ajuda do mano Márcio. Lô não queria sua cara no elepê, aquele que suporte que media 31 cm x 31 cm. Ao que Márcio rebateu: “não quer a cara, coloca os pés”. Cafi fotografou o velho par de tênis do jovem músico, hiponga, maconheiro, distraído, aventureiro e muito bem-humorado. A capa também fez história. Ninguém diz “o Disco do Lô”, mas sim o “Disco do Tênis”, hoje disputado em sebos digitais.

Na trilha sonora do filme de Lírio e Natara há grandes momentos da MPB, caso de “Dora”, de Dorival Caymmi, “Vapor Barato” e “Movimento dos Barcos” (Macalé e parceiros), “Tudo que Você Podia Ser” (Lô e Márcio), “Paula e Bebeto” (Caetano e Milton), “Porto da Saudade”, de Alceu Valença, e, no fecho, o vozeirão de Maria Bethânia somando frevo a ressonâncias de fado na bela e dolente “Recife, Mãe de Sol”, de Jota Michiles. Não há quem resista.

Milton Nascimento não está presente, em pessoa, no filme. Mas sua criatividade expressa em inesquecíveis canções é evocada em muitos momentos. Cafi conta que soube da existência dele num disco de Elis Regina. Ficou fascinado. E o filme cita frase de Rogério Duarte, o “tropikaoslista” baiano, que foi ao ponto: “Milton é o mistério que o Brasil entendeu”.  E que Cafi fotografou como nenhum outro.

 

Cafi
Brasil, 2022, 76 minutos, cor e p&b, 14 anos
Direção: Lírio Ferreira e Natara Ney
Argumento: Lírio Ferreira
Roteiro e montagem: Lírio Ferreira e Natara Ney
Direção de fotografia: Beto Martins
Pesquisa de imagem: Antônio Venâncio
Pesquisa de fotos: Cafi
Pesquisa musical: Natara Ney
Trilha incidental: Jean Pierre e Lula Queiroga
Participações: Cafi, Mestre Anderson Miguel, Alceu Valença, Otto, Maracatu Cambinda Brasileira (Recife-Olinda), Deborah Colker e sua companhia de dança, Jards Macalé, Ronaldo Bastos, Miguel Rio Branco (Rio de Janeiro), José Celso e Oficina Usina Uzona (São Paulo) e Lô Borges, Márcio Borges, Telo Borges e Marilton Borges (Belo Horizonte)
Festivais: Festival do Rio, Mostra Internacional de Cinema de SP e Mostra de Tiradentes. Premiado como melhor documentário no LABRIFF (Festival de Cinema Brasileiro de Los Angeles)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.