“Fellini por Fellini” revela, no Curta!, as glórias do diretor e as dores de Giulietta Masina
Por Maria do Rosário Caetano
O que mais chama atenção em “Fellini por Fellini”, documentário do francês Jean-Christophe Rosé, é o discreto papel que a atriz e companheira do genial cineasta, Giulietta Masina, desempenharia em seus filmes. Principalmente depois de conquistar a Palma de Ouro em Cannes por sua atuação em “As Noites de Cabíria”.
Sem nenhum sensacionalismo, o realizador de “Fellini, Confidences Retrouvées” (título original) acompanhará a glória do criador de “A Doce Vida” e “8 1/2” e, revolvendo camadas subterrâneas, a dor oculta da intérprete de “Gelsomina” e “Cabíria”. Ela viveu com o marido famoso por 50 exatos anos (de 1943 até a morte dele, em 1993).
Quem assistir, no Canal Curta!, ao documentário composto com as “confidências reencontradas” de Federico Fellini (1920-1993) – estreia nessa quarta-feira, 24 de abril, às 23h, seguida de reprises — terá olhos, ouvidos e sensibilidade para acompanhar a glória do cineasta italiano nascido em Rimini, sua chegada a Roma, suas lembranças do período fascista, seu processo criativo, seu mergulho profundo na psicanálise, sua parceria com Nino Rota (1911-1979) e a dor que sentiu quando o compositor e amigo morreu, aos 68 anos (Fellini tinha 59).
E Giulietta Masina? Ela está na linha de frente do documentário?
Não. Giulietta, que atuou em oito filmes do marido, só terá grande destaque na segunda metade dos anos 1950, quando interpretaria as duas personagens que a colocaram, definitivamente, na história do cinema: Gelsomina, a moça vendida pela mãe a um lutador exibicionista (Anthony Quinn), e a prostituta Cabíria.
Em “A Estrada da Vida” (foto, 1955), a jovem mambemba com seu “dono” pelas entranhas da península. Torna-se ajudante daquele homem rude, que a ama, mas a maltrata com evidente brutalidade. O filme comoveu o mundo.
Três anos depois, Giulietta daria vida à ingênua prostituta Cabíria, que exercia o ofício mais antigo do mundo, guiada por seu imenso e romântico coração. Ela acreditava, apesar de sofrer uma desilusão amorosa atrás da outra, que haveria de encontrar seu grande amor. Selecionado para o Festival de Cannes (1957), o filme consagrou Giulietta Masina. Cineasta e a esposa viveram, juntos, dias de glória.
Ela tinha, então, 36 anos, cara e jeito de menina. Ele, 37 e somava seis longas-metragens no currículo (e um episódio em “O Amor na Cidade”, 1953). Além dos dois protagonizados por ela (“Estrada” e “Cabíria”), Fellini assinara, com Alberto Lattuada, seu filme de estreia, “Mulheres e Luzes” (1950), “Abismo de um Sonho” (1952), “Os Boas-Vidas” (1953) e “A Trapaça” (1955). Em quase todos eles, Giulietta teve um papel como atriz.
O sucesso de “As Noites de Cabíria” e a poderosa vitrine de Cannes mexeram, profundamente, com o processo criativo de Fellini. Ele partiu, então, para seu projeto mais ousado e revolucionário – “La Dolce Vita” (1960). O cineasta já havia colocado um vocábulo nos dicionários do cinema: “vitelloni” (bezerrões, novilhos), aqueles rapazes inúteis, que não sabiam o que fazer da vida, de tão folgados. Aqueles “boas-vidas”, na feliz tradução brasileira. Colocaria mais um termo no léxico cinematográfico: “doce vida”. Um jeito de viver intensamente as maravilhas da existência, a juventude, as festas, a mundanidade. E, mais tarde, seu nome daria origem a um adjetivo: felliniano (algo onírico, feérico).
Para seu alter-ego em “La Dolce Vita”, Fellini escolheu o belíssimo Marcello Mastroianni e o cercou das mais belas mulheres da Europa: a sueca Anita Ekberg, as francesas Anouk Aimée e Ivonne Furneaux, a inglesa Barbara Steele, a alemã Nico, a ninfeta italiana Valeria Ciangottini, a turca Magali Noel… Não sobrou nenhuma vaga para Giulietta Masina, que guardava sua Palma de Ouro (por “Cabíria”) na estante. Não tinha filhos (o único que tivera, morrera dez dias depois de nascer, em 1945).
Com o sucesso arrebatador de “La Dolce Vita” (Palma de Ouro em Cannes, agora como melhor filme), a fama de Fellini tornou-se planetária.
A Igreja Católica voltou a implicar com o cineasta “devasso”. O fizera antes, quando obrigara os produtores de “As Noites de Cabíria” a cortar impressionante “sequência do saco”. Aquela na qual um homem, na Itália pós-guerra, encontrava a ingênua prostituta e perguntava se ela morava num dos miseráveis buracos da periferia romana. Ela dizia que não. Se esta fosse sua realidade, Cabíria ganharia donativos do bom samaritano. A sequência só seria agregada ao filme muitas décadas depois.
Em “La Dolce Vita”, depois de fazer uma estátua religiosa, pendurada num helicóptero, sobrevoar Roma, Federico mostrava a Via Venetto, coração mundano da capital italiana, passados 15 anos do fim da Guerra, dedicada ao gozo, às celebridades e ao jornalismo ilustrado por alucinados paparazzi.
Em “Fellini por Fellini”, o documentarista francês registra lembranças do próprio diretor italiano relativas às pressões maternas. Sua mãe, católica fervorosa, fora mobilizada por religiosos de Rimini, que pediam que ela desse um jeito no filho. A velha senhora, que sonhava ver Federico formado em Advocacia, não via o cinema como profissão séria. Por isso, implorava a ele, quando a visitava: “Meu filho, quando é que você terá seu anel de doutor? Não dá para se formar na universidade entre um filme e outro?”
Com o acréscimo do pedido dos religiosos, que queriam o cineasta menos “herege”, a mãe de Fellini passou a lutar por duas causas – a volta dele aos estudos (e a consequente conquista do diploma de doutor em leis) e a dedicação a filmes mais edificantes. Que não incomodassem a Igreja.
Coberto de glórias, Fellini preparava aquele que seria, para seus admiradores, o ponto mais alto de sua carreira – “8 1/2” (“Fellini Oito e Meio”, 1963). Isto depois de dirigir mais um episódio em filme coletivo (o delicioso “As Tentações do Dr. Antônio”, em “Boccacio 70”, 1962).
O cineasta estava no auge de sua criatividade. Mais uma vez convocou o “deus peninsular” Marcello Mastroianni para personagem ainda mais autobiográfico – o cineasta Guido Anselmi, ironicamente mergulhado em profunda “crise criativa”.
Fellini somou os dois episódios que realizara, contando-os como “meio filme”. Aquele seria o oitavo (e meio). O filme ganharia a Estrela de Ouro no Festival de Moscou. E, mais uma vez, não havia papel para Giulietta Masina. Em torno de Guido, mais mulheres jovens e belas (Claudia Cardinale, Sandra Milo, Barbara Steele, Anouk Aimée, Rossella Falk, Ivone Cassadei, Madeleine Lebeau…).
Sob influência total de seu analista (Ernest Bernhard), Fellini mergulhava no mundo dos sonhos, nos aditivos lisérgicos, nas noitadas de farra sem fim. E escrevia, com Dino Buzzati, o roteiro de “A Viagem de G. Mastorga”, filme que nunca realizaria.
Em 1965, o cineasta se lembraria que a esposa era atriz e daria a ela o papel de protagonista de “Julieta dos Espíritos”. Um filme fora do esquadro para a romântica e sentimental Giulietta Masina, lembrará o documentarista Jean-Christophe Rosé. Ela gostava de interpretar personagens marcados pela ternura, capazes de arrancar lágrimas emocionadas dos espectadores. Fez o que pôde. Mas aquele não era o mundo dela. O filme fracassou.
Cada vez mais mergulhado em seu mundo onírico, Fellini viveria fase complicada, pelo menos em termos de diálogo com o público que amara seus filmes anteriores, incluindo os sofisticadíssimos e complexos “La Dolce Vita” e “8 1/2”.
“Satyricon” chegaria aos cinemas em 1969. Outro fracasso comercial. E dois “documentários” (com todas as aspas do mundo) se seguiriam: “Os Palhaços” (1970), e “Roma de Fellini” (os distribuidores já acrescentavam o nome dele aos títulos de seus filmes), de 1972.
Federico Fellini queria ser amado por seu público. Voltou ao passado para lembrar os tempos do bufão Mussolini e gerou aquele que tornou-se um dos maiores sucessos artísticos e comerciais de sua carreira (o último?): “Amarcord” (1973). Mais uma vez, sem Giulietta Masina (ausente também de “Satyricon”).
Os filmes seguintes permaneceram com bilheterias reduzidas, “Casanova de Fellini”, “Ensaio de Orquestra” (este, pelo menos, deu o que falar!), “A Cidade das Mulheres” (mesmo com Mastroianni no elenco).
Em 1983, exatos dez anos depois de “Amarcord”, Fellini realizou “Et la Nave Va”. O filme foi esperado com ansiedade por seus admiradores. Mas eles já haviam envelhecido. Fellini, em pessoa, visitou cinemas em sua Itália natal. As salas estavam quase vazias. Naquele momento, ele percebeu que o cinema mudara. Já não havia mercado para seus filmes oníricos, circenses e muito elaborados. E seu amigo, o compositor Nino Rota, parceiro insubstituível, morrera quatro anos antes.
O criador dos “Vitelloni”, do Sceicco Bianco (encarnado por seu amigo Alberto Sordi), de Gelsomina e Cabíria, de Marcello Rubini, de Guido Anselmi e do tio maluquinho que gritava, do alto de uma árvore, “io voglio una donna”, já não conseguia mobilizar multidões.
Fellini ainda dirigiria Giulietta Masina e Mastroianni em “Ginger & Fred” (1985), uniria Marcello e Anita Ekberg em filme-testamento, em “Entrevista” (1987). E colocaria um ponto final em seu mundo onírico com “A Voz da Lua” (com Roberto Benigni). Este, perto de sucessos de outrora, parece, até hoje, um triste e melancólico canto de cisne.
Giulietta não aguentou viver sem o marido. Ele morreu em outubro de 1993, aos 73 anos. Ela partiria cinco meses depois, em março de 1994.
Fellini por Fellini | Fellini, Confidences Retrouvées
Documentário, 60 minutos, França, 2023
Direção: Jean-Christophe Rosé
Montagem: Baptiste Saint-Dizier
Onde: no Canal Curta! e no streaming Curta-on
Estreia: quarta-feira, 24 de abril às 23h
Reprises: dia 25 de abril (02h50 e, também, às 16h50)