“Diálogos com Ruth de Souza” mostra trajetória de atriz marcada por altivez e elegância
Por Maria do Rosário Caetano
Depois de dez anos de trabalho em comum entre atriz-personagem – a carioca Ruth de Souza (1921-2019) – e realizadora, a paulistana Juliana Vicente, chega aos cinemas, nessa quinta-feira, 9 de maio, o longa documental (com inserções ficcionais-performativas) “Diálogos com Ruth de Souza”.
Responsável por verdadeira façanha – realizar o primeiro longa-metragem sobre a trajetória do arredio, ousado e enfezado Mano Brown (“Racionais – Das Ruas de São Paulo pro Mundo”) – Juliana construi seu tributo a Ruth de Souza com imensa e longa dedicação.
A cineasta começou a entrevistar a atriz na residência dela (já nonagenária, Ruth locomovia-se em cadeira de rodas). Foram muitos encontros. À medida que as filmagens prosseguiam, Juliana ia tomando coragem e fazendo perguntas mais íntimas: houvera algo mais entre ela e Abdias Nascimento, o criador do TEN (Teatro Experimental do Negro)? Por que se mantivera solteira pela vida inteira?
Em vão. Como uma esfinge, Ruth se negava a revelar dados de sua vida afetiva. Só mostrava imensa boa vontade em falar de sua trajetória nos palcos, na TV e no cinema, este definido como sua maior paixão. E em justificar, mais com gestos que com palavras, porque tornou-se um símbolo de elegância, altivez e doçura.
Sem alterar a voz, ela relembrará sua temporada nos EUA, onde, com bolsa da Fundação Rockfeller, frequentou curso de aperfeiçoamento. Quando vê documentos de sua temporada na América do Norte em mãos de Juliana, indaga: como você conseguiu esse material?
A diretora, hoje com 39 anos, conta que recorreu aos arquivos da própria Fundação Rockfeller. Fotos, muitas fotos, mostrarão a atriz com seus colegas de curso, atores afro-americanos. E ela evocará, com gosto, aqueles momentos. E se deliciará ao ouvir os dizeres de bilhete do poeta e diplomata Vinícius de Moraes, que a recomendavam aos anfitriões nos EUA.
Juliana chegou a registrar depoimentos de oito artistas e pesquisadores (entre eles, Antônio Pitanga, Léa Garcia e Lázaro Ramos), mas optou por não realizar um “cabeças-falantes”. Apostou tudo nas conversas com a atriz, em entrevista de arquivo dada à TV (na qual Ruth veste vistosa blusa amarela) e em inserções ficcionais. Para recriar esses momentos, Juliana Vicente convocou Dani Ornellas (de “Cidade de Deus” e “Filhas do Vento”) e Jhenyfer Lauren. Elas revivem Ruth de Souza na maturidade e na pré-adolescência, respectivamente. Com elas, contracenam a artista visual Rosana Paulino, a mãe-de-santo Iya Wanda De Omolu, a cantora, compositora e atriz Lívia Laso, a atriz Mirrice De Castro e a cantora Luísa Dionísio.
Em clima de performance, as inserções ficcionais apresentam cruzamento da trajetória de Ruth com o universo mitológico africano visto pelo encontro com as Yabás, orixás femininas.
O filme mergulha nos mais diversificados arquivos em busca de imagens da atriz e de pessoas que foram fundamentais em sua trajetória. Um, em especial, ganhará o destaque merecido – Grande Otelo (1915-1993). O ator, que trabalhou com Ruth no cinema e na TV, dará seu testemunho sobre a colega. Zózimo Bulbul também será visto no documentário, assim como Eliézer Gomes, com quem a atriz contracenou em “Assalto ao Trem Pagador” (no papel da amante de Tião Medonho, enquanto Luiza Maranhão, então a bombshell do cinema brasileiro, exerceria o papel de esposa – grande ousadia de Roberto Faria e de seu colaborador, o roteirista Alinor Azevedo).
Ao longo do filme, Ruth de Souza será vista também no mundo do samba. Primeiro, na Comissão de Frente da Mangueira (com Milton Gonçalves, o próprio Otelo, Glória Maria, Djavan, João do Pulo, entre outras personalidades) e, depois, numa noite de chuva, já nonagenária, num carro especial, na condição de homenageada de honra da Escola de Samba Santa Cruz.
A carreira da jovem Ruth começou quebrando tabus. Com o Teatro Experimental do Negro, sob o comando do visionário Abdias Nascimento (1914-2011), ela atuou no Teatro Municipal, espaço reservado à elite branca carioca. O fez como integrante do elenco de “O Imperador Jones”, texto do festejado dramaturgo norte-americano Eugene O’Neill. A atriz lembrará que o “sogro do ator e cineasta Charles Chaplin”, ao ser informado por carta que a trupe brasileira não tinha recursos para pagar os direitos autorais da peça, a liberou sem cobrar nada.
Dali em diante, Ruth, filha de lavadeira, bem-educada pela mãe, aluna dedicada e disciplinada, seguiria carreira que duraria sete longas décadas. Com orgulho, ela dirá a Juliana Vicente que sempre trabalhou e muito. Que mesmo nonagenária, continuava atuando.
A estreia de Ruth no cinema se deu em uma comédia maluca, que tinha Oscarito à frente do elenco (“Falta Alguém no Manicômio”). Em seguida, atuou em drama épico, que recriava “Terras do Sem Fim”, de Jorge Amado, romancista baiano que fez do povo negro da Bahia seu principal personagem. “Terra Violenta” (1949), nome que rebatizou a saga amadiana, mobilizou um diretor estrangeiro, Eddie Bernoudy. Depois viriam outros filmes. Um deles, de imensa importância na história do cinema afro-brasileiro: “Somos Todos Irmãos” (José Carlos Burle, 1950), escrito por Alinor Azevedo.
Interessada em consolidar sua carreira, Ruth abandonou o Rio de Janeiro e mudou-se para São Paulo, para integrar o elenco da Vera Cruz, companhia que pretendia criar uma Hollywood nos trópicos. Começou em “Terra é Sempre Terra” e “Ângela”, ambos de 1951. Depois, veio “Sinhá Moça” (Tom Payne, 1953). Este filme representaria o Brasil no Festival de Veneza. Há quem afirme que Ruth de Souza, mesmo em papel coadjuvante, chamou mais atenção que os protagonistas Eliane Lage (a sinhazinha do título) e Anselmo Duarte. O filme dividiu o Prêmio Especial do Júri com o espanhol “La Guerra de Diós”. A melhor atriz foi a norte-americana Lili Palmer (por “Leito Nupcial”).
A carreira de Ruth de Souza seguia. Ainda na Vera Cruz, que teve curta vida (1949-1954), ela atuou na comédia “Candinho”, de Mazzaropi. Voltou ao Rio e continuou sem os papeis de protagonista que poderia desempenhar. Mesmo assim, em 1962, brilhou em “Assalto ao Trem Pagador”, e, em 1977, passou pelo elenco coral de “Ladrões de Cinema” (Fernando Coni Campos), até protagonizar, com Léa Garcia, o drama “Filhas do Vento”, de Joel Zito Araújo. O elenco do filme foi premiado no Festival de Gramado.
Na TV, Ruth de Souza estreou no especial “A Vida com Eliane” (1957), seguido pela telenovela “A Deusa Vencida” (1965). Em 1969, chegava a seu papel de coprotagonista, em “A Cabana do Pai Tomás” (1969). Ela, uma legítima afro-brasileira. Mas seu par, o protagonista Sérgio Cardoso, ator branco, fôra pintado de preto, usou peruca e colocou rolhas no nariz para compor o personagem. A atriz conta, no filme, que houve polêmica e que a telenovela sofreu revezes. Mas não se aprofunda no assunto.
Ao longo do documentário, a militância de Ruth de Souza pela abertura de caminhos e conquista de direitos para atores afro-brasileiros se fará com elegância e ponderação. Ela, desde os tempos da Vera Cruz, sempre fez questão de vestir-se como uma diva. Suas intervenções no filme de Juliana Vicente se dão sem alarde ou estridência. Ela conta que, ao participar de dois filmes escritos por Abílio Pereira de Almeida, incomodou-se com o nome de suas personagens: Bastiana.
Por que o mesmo nome para as duas personagens?, indagou. Ao que Abílio retrucou: “esse é o nome recorrente de mulheres negras”. Não – protestou a atriz, “tanto que me chamo Ruth”. E ele trocou o nome.
Em outros momentos do documentário, Ruth lembrará que sempre coube a atrizes afro-brasileiras interpretar papéis de escravas, domésticas e, em muitos casos, babás gordas. Ela fez escravas e domésticas, mas sempre magra, digna e elegante.
Assistir a “Diálogos com Ruth de Souza” é fruir narrativa que aproxima duas mulheres de gerações bem diferentes, que se respeitam e permutam experiências de vida. Uma delas, com discrição e muito talento, conseguiu, apesar dos muitos percalços, construir uma bela história de vida que durou 98 anos. A outra está tecendo sua própria trajetória no comando de sua carreira como diretora, produtora e, agora, distribuidora.
Diálogos com Ruth de Souza
Brasil, 2024, documentário, 107′
Direção e roteiro: Juliana Vicente
Participação: Dani Ornellas, Jhenyfer Lauren, Rosana Paulino, Iya Wanda De Omolu, Luísa Dionísio, Livia Laso e Mirrice De Castro
Fotografia: Lilis Soares e Ana Paula Mathias
Montagem: Washington Deoli
Produção: Juliana Vicente e Dani Ornellas
Distribuição: Preta Play
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