Projeto “Fragmentos” da Rede Globo resgata trechos de velhos folhetins que marcaram época

Foto: Carlos Augusto Strazzer, Vera Fischer e Tarcísio Meira, em “Coração Alado”

Por Maria do Rosário Caetano

A Rede Globo está resgatando, para deleite de gerações de fãs de suas telenovelas, o que restou de seus grandes sucessos das décadas de 1970 e 1980. Com o projeto “Fragmentos”, apresentado na CineOP (Mostra de Cinema de Ouro Preto), o público soube que de “O Rebu”, de Bráulio Pedroso, “Estúpido Cupido”, de Mário Prata, “Sol de Verão”, de Manoel Carlos, e até “Coração Alado”, de Janete Clair, importantes títulos da emissora, restou pouco material.

De alguns clássicos de nossos folhetins eletrônicos – caso de “Beto Rockfeller” (TV Tupi), “O Bofe” e  “O Cafona” (Globo), as três de Bráulio Pedroso, e “Bandeira 2”, de Dias Gomes – só sobraram roteiro (na íntegra ou em partes), fotos e rica cobertura de imprensa. De outros, um único capítulo. Ou três, cinco, oito, dez, até 20.

Em Ouro Preto, Adelina Veras da Costa, coordenadora de mídias digitais da Rede Globo, apresentou o primeiro e restaurado – com recursos digitais de última geração – capítulo de “Coração Alado”, telenovela protagonizada por Tarcísio Meira, Vera Fischer, Walmor Chagas, Débora Duarte e um hilário Jardel Filho, na pele de massagista-fofoqueiro, cujo ídolo máximo era Ibrahim “cavalo não sobe escada” Sued.

No dia seguinte à sessão – o capítulo da novela foi exibido na telona do Cine UFOP (Universidade Federal de Ouro Preto) para plateia de 100 pessoas –, Adelina apresentou o projeto “Fragmentos” a auditório lotado de professores e profissionais dedicados à preservação audiovisual.

Por acreditar que “a teledramaturgia tem importante contribuição a dar à história do país”, e por deparar-se com os avanços tecnológicos (inclusive os garantidos pela Inteligência Artificial), a Globo promoveu prospecção em seus acervos e descobriu 28 folhetins das décadas de 1970 e 1980, com “até 20 episódio preservados”. Depois de devidamente restaurados, os primeiros deles foram disponibilizados aos assinantes da Globoplay. Caso de “O Espigão”, novela de Dias Gomes, levada ao ar em 1974. Uma novela que registrou a sanha imobiliária nos tempos do perfeito Marcos Tamoyo, que o Pasquim chamava Marcos Tramoia.

O prestígio do dramaturgo, autor da peça teatral “O Pagador de Promessas”, base da única Palma de Ouro ganha pelo cinema brasileiro em Cannes (“O Pagador de Promessas”, Anselmo Duarte, 1962), deve estar na origem do milagre que salvou “O Espigão” (1974). De seus 150 capítulos, só o de número 28 desapareceu. E foi possível dar um jeito em partes danificadas (o mundo digital pode muito). É, também, de Dias Gomes, a mais antiga novela resgatada na íntegra pela Rede Globo: “O Bem Amado” (janeiro a outubro de 1973).

Duas razões, decerto, salvaram a trama que consagrou o demagogo Odorico Paraguaçú (Paulo Gracindo), o pistoleiro Zeca Diabo (Lima Duarte), as Irmãs Cajazeira (Ida Gomes, Ilva Niño e Dorinha Duval) e o aparvalhado Dirceu Borboleta (Emiliano Queiroz): o prestígio de seu autor, que a recriou sua peça “Odorico, o Bem-Amado ou Os Mistérios do Amor e da Morte”, e o fato de ter sido a primeira telenovela gravada em cores no Brasil. Isto, um ano e meio depois da transmissão (em cores vibrantes) da Copa do Mundo de 1970, direto do México.

Os responsáveis pelo projeto “Fragmentos” lembram, no entanto, que “nem sempre será possível ter um arco completo das tramas salvas parcialmente”. Caso de “Coração Alado”, de Janete Clair, esposa de Dias Gomes.

O vistoso capítulo exibido em Ouro Preto resistiu bem às dimensões da enorme tela do Cine UFOP. Ambientada em Nova Jerusalém-Pernambuco, Rio de Janeiro e até em Nova York, a trama introdutória mostrou o núcleo familiar do escultor Juca Pitanga (Tarcísio Meira), artista plástico pernambucano que chega à cidade maravilhosa, com mãe e irmãos, em busca de maior visibilidade para sua carreira. E, também, disposto a acertar contas com o enrolão Leandro Serrano, personagem de Ney Latorraca, braço direito do marchand Alberto Karany (Walmor Chagas).

Já no desembarque na Rodoviária do Rio, a família nordestina, que chega com dinheiro contado, é assaltada. Vai se arranchar na casa do auxiliar de Karany, onde é recebida por preocupada (com a invasão) empregada afro-brasileira (Chica Xavier). Antes de exibir qualquer imagem, a Rede Globo já avisara – em vistoso letreiro – que a telenovela fôra feita em outro tempo histórico.

Em Nova York, a ex-mulher do marchand, vivida pela bela Barbara Fazio (1929-2019), se prepara para regressar ao Brasil. O ex-marido não a quer perto de suas filhas, em especial da caçula, adolescente vivida por Myrian Rios (já namorada do astro Roberto Carlos). As outras duas são a ambiciosa Catucha (Débora Duarte) e a boazinha Roberta (Nívea Maria). A personagem de Nívea é amiga de Vivian (Vera Fischer) e de Melissa (Joana Fomm), noiva de Leandro. Um chá de panela (na mansão dos Karany) vai desenhar o contraste entre pobres e ricos.

E haverá tempo para a hábil Janete Clair (tudo num único capítulo introdutório) apresentar o núcleo cômico, liderado por um louríssimo Jardel Filho, então com 51 anos, na pele de Tassio von Strauss. Ele é suburbano, pobre e ambicioso. Quer se dar bem. Fofoqueiro, deseja o posto de colunista social, pois escuta, em sua casa de massagens, as mais secretas confissões de sua clientela feminina.

Jardel Filho em “O Bem-Amado” (1973) © Acervo/Globo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jardel Filho (1928-1983) morreria dois anos e meio depois de “Coração Alado”, em papel de imenso destaque na novela “Sol de Verão”, de Manoel Carlos (1983). Faltavam poucos capítulos para o folhetim chegar a termo. O ator tinha apenas 54 anos e currículo dos mais invejáveis. Causara furor, ao lado de Cacilda Becker, no “Floradas na Serra” (1954) veracruziano. E tornar-se-ia cult (e eterno) ao encarnar o poeta Paulo Martins em “Terra em Transe” (Glauber Rocha,1967). Bráulio Pedroso o transformaria em “O Bofe” (1972-73). Ele arrasa já em sua primeira aparição em “Coração Alado”.

Pena que não será possível ver a íntegra da telenovela de Janete Clair. Ela integra o time das que sobreviveram com menos de 20 capítulos. Mesmo assim, vale lembrar mais alguns fragmentos de seu entrecho: no Rio, Juca Pitanga se envolve com Catucha, a geniosa filha do marchand, e com a jovem Vivian, a linda, mas pobre, Vera Fischer. Apesar de amar Vivian, ele se casará com Catucha, pensando em sua projeção profissional. O casamento termina quando ele decide acompanhar o irmão Gabriel (Carlos Vereza), perseguido pela ditadura militar, em seu exílio político rumo ao México.

Juca regressará ao Brasil anos depois, graças à Lei da Anistia. Janete Clair teve que lidar com a censura da época, devido aos temas polêmicos abordados – comportamento livre de algumas personagens femininas, perfis de alguns políticos etc. Afinal, estávamos num Brasil que vivia há quase duas décadas sob o regime militar. A telenovela foi dirigida pela dupla Roberto Talma e Paulo Ubiratan.

As telenovelas completas (e mais contemporâneas) continuarão sendo mostradas no Vale a Pena Ver de Novo (nas tardes da Globo), e outras (também completas e em boas condições técnicas) no canal por assinatura Viva. Caberá, pois, ao streaming (Globoplay) ofertar materiais (incompletos ou imperfeitos) do passado, destinados aos que têm saudade de Jardel Filho, Paulo Gracindo, Leonardo Villar, Armando Bógus, Aracy Balabanian, Claudio Marzo, Tarcísio Meira e Claudio Cavalcanti (os três “Irmãos Coragem”), Zilka Salaberry, Ilva Niño, Chica Xavier, Ziembinsky, Eloísa Mafalda, Tônia Carrero (que de tão voluntariosa, diz-se, dava nome a uma das pontes de safena do diretor Paulo Ubiratan), Carlos Eduardo Dollabela e o grande, imenso, Milton Gonçalves, um dos atores preferidos de Dias Gomes.

A Rede Globo já resgatou 86 novelas, o correspondente a 16.200 horas de exibição. Até 2027, promete resgatar outras tantas, incluindo, claro, minisséries e séries.

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