Cillian Murphy dá vida a carvoeiro perturbado pela exploração de moças pobres nas Lavandeiras Madalena
Foto © Enda Bowe
Por Maria do Rosário Caetano
“Pequenas Coisas Como Estas”, de Tim Meliants, realizador belga de 45 anos, chega aos cinemas brasileiros nessa quinta-feira, 13 de março, sem alarde. Mesmo que seu protagonista (e produtor, junto com Matt Damon e Ben Affleck), seja o astro irlandês Cillian Murphy, de 48 anos, protagonista absoluto de “Oppenheimer”. O grande filme de Christopher Nolan lhe rendeu o Oscar de melhor ator, o Globo de Ouro, o Bafta inglês e o prêmio do Sindicato dos Atores dos EUA. Consagração absoluta.
O que o astro ensimesmado, de olhos profundamente azuis – revelado ao mundo por Ken Loach e “Ventos da Liberdade”, vencedor da Palma de Ouro – faria depois do sucesso planetário de “Oppenheimer”? Um blockbuster de super-heróis? Uma comédia romântica? Um filme milimetricamente pensado para levá-lo de volta à festa da Academia?
“Pequenas Coisas Como Estas” não se encaixa em nenhuma dessas vertentes. Até porque o filme sensação da Irlanda, ano passado, foi “Kneecap, Música e Liberdade”, de Rich Peppiatt, em tudo oposto ao filme de Tim Meliants. Embora pareça se aproximar dos filmes oscarizáveis (assunto nobre, tom edificante, ator em papel denso e elaborado), o longa irlandês foi ignorado pela Academia (poderia aspirar indicações a melhor ator, atriz coadjuvante e fotografia, por exemplo).
Cillian Murphy interpreta o carvoeiro Bill Furlong com tamanha intensidade que parece excessivo. Por que sofre tanto? Por que, como se fosse um ‘voyeur”, vive espreitando de sua janela moças que são levadas a contragosto para o Convento das Freiras? Por que condói-se do menino que perambula pelas ruas da cidadezinha com tamanhos empenho e abnegação?
O carvoeiro é casado com esposa compreensiva e pai de cinco filhas. Vive entre sua pequena distribuidora de carvão, que abastece as lareiras das residências da pequena New Ross, de forma que possam enfrentar dias e noites geladas. Chega em casa imundo e lava as mãos com vigor, esfregando-as com sabão forte e escova nada macia.
Entre os clientes do introspectivo carvoeiro está o Convento, gerido por severa madre superiora, empenhada em arrebanhar novas “ovelhas” desgarradas. A personagem é defendida com a habitual competência por Emily Watson (do arrebatador “Ondas do Destino”, de Lars von Trier).
O “rebanho” do Convento reúne moças de comportamento dissonante, se medido pelas regras do Catolicismo (grávidas solteiras ou jovens prostitutas). Levadas contra a vontade para a instituição religiosa, as adolescentes serão usadas como mão-de-obra gratuita nas Lavanderias Madalena. Tais lavanderias sobreviveram, na Irlanda, de 1922 até 1998. Por suas instalações passaram mais de 50 mil jovens (o filme cita, em letreiro final, 56 mil internas) e seu modelo de “reeducação” chegou a outros países católicos.
O roteiro do filme, escrito por Enda Walsh, a partir do livro “Small Things Like These”, tenta explicar as razões que levaram o carvoeiro Bill Furlong a condoer-se tanto com o sofrimento alheio. A mãe dele, que engravidou quando solteira, só não foi transformada em uma das lavadeiras do Convento das Madalenas, porque uma senhora rica a acolheu e deu carinho ao menino, “fruto do pecado”. Um pouco dessa história será contada em flashbacks.
Tudo é feito com a explícita intenção de profundidade. As interpretações são densas, os diálogos contidos, a fotografia de Frank van den Eeden fascinante, com suas noites douradas, em contraste com o preto da carvoaria e com o ambiente opressivo do Convento. Mas a história não deslancha. O único vínculo do protagonista com o território religioso se dá por uma casualidade. Ele adentrará as dependências do Convento para fazer uma ou duas entregas do produto de sua carvoaria às freiras. Por que abraçará com tamanha ênfase a causa da jovem grávida, que mal conhece?
Como Charles Dickens (1812-1870) é o grande prosador das agruras dos desvalidos da Grã-Bretanha, ele será citado no filme. Instado pela esposa a escolher um presente de Natal (sim, a trama se passa nesse período e enfatiza a importância dos presentes para as crianças), só sob muita insistência, Bill Furlong escolherá um livro. Preferencialmente, “David Copperfield”.
Cillian Murphy, que protagonizou as duas maiores bilheterias da história de sua pequena Irlanda – “Ventos da Liberdade” (2006), como o recordista, e “Intermission”, com ele e Colin Farrell (2003), em segundo lugar – teve que contentar-se com a modesta repercussão de “Pequenas Coisas Como Estas”. Mas por tudo que se sabe do astro de “Oppenheimer”, ele segue na dele, sereno, centrado, longe do figurino hollywoodiano e da badalação midiática.
Filho e neto de professores católicos, com esmerada educação, inclusive artística, Murphy começou sua trajetória numa banda de rock. Depois apaixonou-se pelos palcos até ser descoberto pelo cinema. Fez grandes papéis (o físico nuclear Julius Robert Oppenheimer e o médico Damien O’Donovan, de “Ventos e Liberdade”, sendo os mais notáveis), passou, em participação especial, pelo épico de guerra “Dunkirk”, por “Batman Begins” e “A Origem”. Como se vê, o londrino Christopher Nolan sempre foi seduzido pelos olhos azuis e intensos do ator, por sua concentração e seu anti-estrelismo. Por isso, confiaria a ele o maior papel de sua carreira (e num filme que arrebataria as principais estatuetas do Oscar 2024).
Vale lembrar, ainda, que o inquieto Neil Jordan escalou Cillian Murphy para interpretar uma travesti em “Breakfast on Pluto” (“Café da Manhã em Plutão”), lançado com diminuta repercussão no Brasil, em 2005. Quem for assistir a “Pequenas Coisas Como Estas” terá, ao menos, duas compensações: a onipresença do astro irlandês e a fotografia de Frank van den Eeden, um craque nascido nos Países Baixos e radicado na Bélgica.
Pequenas Coisas Como Estas | Small Things Like These
Irlanda-Bélgica, 2024, 98 minutos
Direção: Tim Mielants
Roteiro: Enda Walsh (a partir de livro homônimo, de Claire Keegan)
Elenco: Cillian Murphy (Bill Furlong), Eileen Wash (Sra Furlong), Emily Watson (Madre Superiora), Louis Kirwan (Bill criança), Michelle Fairley (Sra. Wilson), Liadán Dunlea (a mais velha das cinco filhas de Bill), Helen Behan (dona do pub)
Fotografia: Frank van den Eeden
Música: Senjan Jansen
Distribuição: O2 Play