Olivier Assayas volta aos cinemas brasileiros com “Tempo Suspenso”, delicada comédia autobiográfica

Foto © Carole Bethuel

Por Maria do Rosário Caetano

O parisiense Olivier Assayas visitou a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em 2019, para mostrar o épico “Wasp Network”, baseado em livro do brasileiro Fernando Morais (“Os Últimos Soldados da Guerra Fria”) e produzido por Rodrigo Teixeira. Outro épico de sua lavra, o eletrizante “Carlos, o Chacal”, filme e série, o havia projetado fora das fronteiras cinéfilas europeias e transformado o ator venezuelano Édgar Ramírez em astro latino.

Agora, já septuagenário, Assayas, ex-crítico da Cahiers du Cinéma e arauto do boom do cinema asiático na França, chega aos cinemas brasileiros com o delicado e familiar “Tempo Suspenso”.

O filme estreia nessa quinta-feira, 20 de março, no circuito de arte brasileiro. E o faz centrado em quatro personagens – os irmãos Paul Berger (Vincent Macaigne), um diretor de cinema, e Etienne (Micha Lescot), um jornalista musical, que enfrentam a pandemia abrigados em aprazível casa de campo, no interior da França. Na agradável companhia de suas parceiras Morgane (Nine D’Urso) e Carole (Nora Hamzawi).

Quem for ao cinema esperando um filme na escala de sua obra-prima, “Carlos”, e dos vigorosos “Depois de Maio” e “Wasp Network”, vai decepcionar-se. O novo filme, que participou da competição do Festival de Berlim 2024, se propõe a ser, apenas, uma singela e delicada “comédia autobiográfica”.

Paul representa, claro, o alterego de Assayas. Como a casa onde se isolam por causa da pandemia é herança dos pais — nela ele e o irmão cresceram —, cada cômodo estimula o aflorar de memórias esquecidas na correria parisiense. O pomar, o jardim com seus canteiros de flores, cada objeto, cada retrato familiar, tudo serve aos dois irmãos como ativador de lembranças do passado. E de (pequenos) fantasmas.

Boa parte dos críticos que assistiram ao filme dentro da disputa pelo Urso de Ouro, em Berlim, caíram matando. Não se satisfizeram com as evocações cinéfilas de Assayas e viram os irmãos-protagonistas como dois privilegiados, refugiados em magnífica “maison de campagne” durante a pandemia. E ocupados com coisas miúdas, olvidáveis.

De nada adiantaram as ironias utilizadas pelo cineasta-personagem. Que se apresenta como consumista compulsivo, incapaz de abandonar as sessões de análise (feitas, pelo celular, à sombra de frondosa árvore) e transformado em um quase-paranóico, apavorado pelo vírus desconhecido.

Para aplacar a monotonia dos dias e as incertezas do futuro, Paul compra, compra e continua comprando pela internet. Encanta-se com uma panelinha de 90 euros. Na primeira tentativa, ao preparar morangos no desejado recipiente, a matéria orgânica gruda e o utensílio se mostra caro e inútil.

E, mesmo embalado pelo compra-compra, Paul não perde a chance de alfinetar a Amazon, sempre eficiente na entrega de novos pacotes. Que ele esteriliza, também compulsivamente. Ao encontrar a filha, que chega acompanhada da mãe (sua ex-esposa) e do atual marido, para férias campestres, Paul não mede esforços em seu desejo de retirá-la do “domínio (e padrão) Netflix”.

O filme é singelo, mas há de encantar cinéfilos por seu amor às imagens e aos mestres que ajudaram a formar o realizador-cinéfilo-e-ex-crítico Assayas. Incluindo Jean Renoir, homenageado com a abertura pastoral de “Tempo Suspenso” (quem não se lembrará de “Une Partie de Campagne”, 1936)?

O mestre dos mestres do cinema francês relembra, num podcast assistido na “maison de campagne”, seus momentos derradeiros com o pai, o pintor Auguste Renoir (1841-1919). A paisagem de Montabé, com suas árvores e flores, lembra a encantadora Giverny e os quadros do gênio impressionista.

Além do realizador de “A Grande Ilusão” e “A Regra do Jogo”, outros diretores, atores e filmes serão homenageados ou evocados por Assayas – Sacha Guitry (“Estranhas Coisas de Paris”), Kenneth Anger, a atriz Jeanne Balibar, os estadunidenses Quentin Tarantino e (a badalada) Kristen Stewart (por ele dirigida nos fascinantes “Sils Maria” e “Personal Shopper”). Haverá espaço, também, para evocar Sartre e “O Idiota da Família”, o monumental estudo que o filósofo existencialista dedicou a Gustave Flaubert.

Como o irmão Etienne Berger, com quem Paul terá alguns desentendimentos, comanda um programa de rádio, haverá espaço para citações musicais, de Bob Dylan à salsa cubana. Afinal, esta se faz ouvir na casa ao lado, já que anima os almoços dos vizinhos campestres. O som caliente vindo do Caribe servirá de pretexto para Assayas evocar sua passagem por Cuba, onde filmou parte de “Wasp Network”.

Quem for ao cinema – lembremos que poucos dos filmes do prolífico Assayas estrearam em nosso circuito comercial – sem as imensas expectativas geradas por um festival competitivo do tamanho de Berlim, assistirá a um pequeno, mas cativante filme. E, vamos combinar, Vincent Macaigne é um ótimo comediante.

Pela segunda vez, o espaçoso ator dá vida a Assayas. Em tom mais satírico, o fez na ótima série “Irma Vep”, produzida pela A24 (não confundir com o filme que o cineasta realizou com Maggie Cheung, na década de 1990). Repete agora a experiência, imitando “trejeitos e idiossincrasias” do diretor de “HHH, Retrato de Hou Hsiao Hsien”.

Outra curiosidade: quem se parece fisicamente com Assayas é Micha Lescot, que acabou interpretando o irmão siderado por música do realizador parisiense.

Que os cinéfilos aproveitem para ver “Tempo Suspenso” nos cinemas. Afinal, até o streaming mostra-se desinteressado da obra de Assayas, onde podemos encontrar “Wasp Network”, “Vidas Duplas”, “Personal Shoppers”, “Traição em Hong Kong”, “Espionagem na Rede” e “Horas de Verão”, ofertados por algumas plataformas.

 

Tempo Suspenso | Hors du Temps
França, 2024, 105 minutos, 16 anos
Direção e roteiro: Olivier Assayas
Elenco: Vincent Macaigne, Micha Lescot, Nine D’Urso, Nora Hamzawi, Maud Wyler, Dominique Reymond, Madalene Lafont, Thomas Bodson
Fotografia: Eric Gautier
Montagem: Marion Monnier
Som: Romain Cadilhac, Nicolas Moreau, Sarah Lelu, Olivier Goinard
Produção: Olivier Delbosc, Olivier Assayas
Distribuição: Zeta Filmes

 

FILMOGRAFIA
Olivier Assayas (Cineasta e roteirista, Paris, 25 de janeiro de 1955)

2024 – “Tempo Suspenso”
2019 – “Wasp Network” (Rede de Espiões) – disponível na Netflix
2018 – “Idol’s Eye”
2018 – “Vidas Duplas” (Globoplay e Apple TV)
2016 – “Personal Shopper” (Netflix, Claro, Apple TV)
2014 – “Acima das Nuvens” (Sils Maria)
2012 – “Depois de Maio”
2010 – “Carlos” (filme e série)
2008 – “Eldorado”
2007 – “Cada um com seu Cinema” (episódio)
2007 – “Horas de Verão” – disponível no Reserva Imovision
2007 – “Traição em Hong Kong” (Boarding Gate) – disponível no Reserva Imovision
2006 – “Noise”
2006 – “Paris, Te Amo” (episódio)
2004 – “Clean”
2002 – “Espionagem na Rede” (Demonlover) – disponível no Reserva Imovision
2000 – “Destinos Sentimentais”
1998 – “Fim de Agosto, Começo de Setembro”
1997 – “HHH, Retrato de Hou Hsiao Hsien”
1996 – “Irma Vep”
1994 – “Água Fria”
1991 – “Paris s’Eveille”
1989 – “Winter’s Child”
1986 – “Désordre”

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