Festival Citronela apresenta, no arquipélago de Ilhabela, documentários ambientados em quilombos, florestas, salão de baile e canteiros de obra

Foto: “Mambembe”, de Fábio Moura

Por Maria do Rosário Caetano

“Caiçara”, filme de ficção vera-cruziana, colocou o arquipélago de Ilhabela, estância turística de 35 mil habitantes, no mapa cinematográfico brasileiro. Mas, ao criar seu festival de cinema, artistas desse município, situado no litoral norte de São Paulo, preferiram destacar o cinema documental.

Por isso, na última semana desse mês de agosto, de 27 a 31, os ilhéus realizarão a quinta edição do Citronela DOC – Festival de Documentários de Ilhabela, para mostrar dezenas de filmes, de curta e longa-metragem, exibir suas belezas, praias azuis e os sabores de sua culinária. Afinal, ninguém faz festa cinematográfica em estância turística sem desdobrar-se para mostrar, aos que a visitam, os encantos do lugar.

Antes de adentrar nos assuntos propriamente cinematográficos, há que se entender o curioso nome do festival de documentários de Ilhabela. Por que ele se chama Citronela?

Seus organizadores, nucleados na Associação Cultural Citronela, têm a explicação na ponta da língua: “a citronela é uma planta, de origem asiática, conhecida por sua capacidade de repelir insetos, em especial mosquitos. Alguns a chamam de capim limão”. Ela foi escolhida como símbolo do festival, já que é abundante no arquipélago e serve de matéria-prima ao repelente usado por ilhéus e visitantes para espantar incômodos mosquitos.

A Associação Cultural Citronela foi criada em 2018 como um coletivo cultural e institucionalizada como organização social, ano passado, tendo Alice Penna, Débora Bergamini, Juliana Borges, Lívia Razente, Matias Borgström, Pedro Gorski e Ricardo Imakawa como seus artífices.

A quinta edição do Citronela DOC exibirá e debaterá 37 filmes, sendo nove longas-metragens e 28 curtas. Uma semana depois do evento presencial, haverá exibição de títulos selecionados na plataforma Spcine Play (de primeiro a 10 de setembro).

Os filmes são originários de nove estados brasileiros e de oito cidades do Litoral Norte e Vale do Paraíba. Eles foram selecionados com a colaboração e expertise de Francisco César Filho, profundo conhecedor do cinema brasileiro, da produção documental e do circuito de festivais. Formado pela ECA-USP, César Filho estreou na direção, em 1986, dirigindo, com Tata Amaral, o curta “Poema-Cidade”, até chegar aos longas “Augustas” e “Futuro do Pretérito – Tropicalismo Now”, este em parceria com Ninho Moraes. Ele conhece dezenas de festivais, que começou a frequentar, como realizador, na década de 1980. Com “Rota ABC”, de 1991, venceu o Festival de Brasília e ganhou prêmio especial em Oberhausen, na Alemanha. Depois, iniciou, sem abandonar a realização, sua trajetória como curador. Foi, inclusive, diretor do Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo.

A edição do Citronela DOC desse ano pretende “celebrar a potência de vozes e imagens que retratam o Brasil”. Por isso, foram selecionados filmes, sem preocupação com ineditismo, “que percorrem quilombos, florestas, salões de baile, canteiros de obras e memórias afetivas”. E que “trazem histórias de resistência, arte e reinvenção social pelo olhar de quem vive e transforma o país de dentro para fora”.

A curadoria aponta como diferencial da edição desse ano dois filmes que usam tecnologias de realidade estendida (XR). Um deles, “Human”, de Débora Bergamini, leva o espectador a empreender viagem com as sondas Voyager I e II. A diretora propõe ao espectador “uma jornada espacial com a qual a humanidade busca a compreensão de sua existência finita diante da vastidão do cosmo”.

O outro convidado é “Toré Virtual”, de Hugo Fulni-ô e Carolina Berger, que promove experiência sensorial capaz de “transportar o espectador rumo a uma jornada pela cultura Fulni-ô e pelo Toré, prática sagrada do povo indígena que habita o município de Águas Belas, em Pernambuco”.

A mostra nacional tem curadoria de Luciana Oliveira, Bethania Maria e Francisco César Filho. O trio escolheu, em parceria com Matias Borgström, Débora Bergamini e Juliana Borges, os longas e curtas que movimentarão sessões no aprazível Esporte Clube Ilhabela (pois localizado no centro histórico de Ilhabela, junto ao mar).

O sexteto de curadores sabe que os documentários escolhidos já passaram por outros festivais e alguns até foram lançados comercialmente, mas “muitos deles não estão disponíveis para o público do litoral”. Ilhabela só conta com um cineclube, o Villa Bella, que faz o que pode para atender aos moradores do arquipélago, incluindo as crianças e, claro, os turistas (em dias de chuva!).

Ano passado, Márcio Fraccaroli, da produtora e distribuidora Paris Filmes, responsável pelo lançamento de dezenas de filmes brasileiros (caso dos recentes “Homem com H” e “Ritas”), visitou o Cine Clube Villa Bella e ficou muito bem impressionado. Destacou “a organização e gerência do espaço, destinado à formação de público”. Por isso, o cineclube conseguiu exibir, para moradores e visitantes do arquipélago, alguns dos principais títulos da poderosa distribuidora paulistana.

A mostra regional (filmes vindos de cidades do Litoral Norte e do Vale do Paraíba) contou com outro trio de curadores (Juliana Borges, Rodrigo Pereira e Matias Borgström). Juliana conta que o trio ficou surpreso com a quantidade de filmes inscritos: “50 no total, um número impressionante para nossa região”. Oito foram selecionados.

Lívia Razente, produtora-executiva do Citronela DOC explica que, “mais do que exibir documentários nacionais e regionais, queremos promover encontros entre realizadores, moradores e visitantes”. Daí o foco nos debates, seminários e reuniões que unem a turma do audiovisual aos habitantes e turistas (caso esses troquem as praias pelos espaços de exibição e reflexão).

O Citronela terá, esse ano, sessões especiais dedicadas a dois curtas produzidos por alunos da Escola Livre Caiçara, somados ao longa, “Topo”, do cineasta e produtor Eugenio Puppo. A Escola Livre funciona em São Sebastião (82 mil habitantes) e é um dos projetos da Associação Cultural Citronela.

Ano passado, um curso profissionalizante preparou jovens de Ilhabela, Caraguatatuba e São Sebastião para trabalhar no mercado audiovisual. Ao final do processo, dois filmes foram realizados – “O Som da Maré”, híbrido de ficção e realidade, e “DêsGRAÇAs”, uma animação.

“O Som da Maré” acompanha uma jovem cineasta, que regressa à casa de sua avó, no litoral. Enquanto acompanha o crescimento da especulação imobiliária, uma ameaça à população local, a jovem reflete sobre as mudanças climáticas. Vê os moradores ameaçados por inundações. Ela acabará atraída por canto enigmático vindo do mar.

O outro curta – “DêsGRAÇAs” – comandado pela dupla Goraco, apresenta-se como a “única animação” presente num festival dedicado ao cinema documentário. Os alunos do Curso Livre optaram por este gênero ao resgatar lenda de comunidades caiçaras de São Sebastião. Escolheram “uma figura sombria, que costuma aparecer quando palavras de ódio ou desgraça são pronunciadas”. E a representaram como “força opressora — e, simbolicamente, como o invasor colonial europeu”. Para os criadores de “DêsGRAÇAs”, “o Mau Agouro é um alerta ancestral sobre o poder das palavras”.

“Topo”, o longa de Eugenio Puppo, responsável por oficinas no litoral do Rio Grande do Norte, cenário da Mostra de Cinema de São Miguel do Gostoso – foi filmado em São Sebastião. O filme soma o impacto de obras de infraestrutura, realizadas na região, aos efeitos da expansão do turismo. Estas mudanças “são responsáveis por profundas transformações nas vidas dos moradores do município litorâneo”, acredita Puppo, que detectou fenômeno semelhante em seu longa documental “São Miguel do Gostoso” (2011).

O filme sebastianense do diretor de “Sem Pena” mostra Edivaldo Nascimento, amante do cinema e de sua comunidade. O filme destaca o bairro de Topolândia, em São Sebastião. Ele decide registrar, com sua câmera, as transformações ocorridas em sua região. Enquanto isso, Iara enfrenta dificuldades ao tentar encontrar um novo lar no bairro da Topolândia. Ao mesmo tempo, ela lida com os transtornos provocados pela construção de rodovia nos arredores de sua casa. Transtornos provocados, também, por tempestade inesperada, que cai sobre a cidade.

Edivaldo Nascimento prestigiará a sessão e participará, no Citronela DOC, do debate “Memória, Identidade e Território: o Audiovisual como Ferramenta” (sexta-feira, 29, às 16h).

O Festival de Ilhabela selecionou filmes que destacam e elaboram nossas raízes africanas e, também, indígenas. Na primeira vertente destacam-se diversos curtas e, em especial, dois longas-metragens: “Alma Negra, do Quilombo ao Baile”, de Flavio Frederico, e “Salão de Baile: This is Ballroom”, de Vitã e Juru. Este filme, adrenalinado, mergulha no pulsante universo da comunidade preta LGBTQIAPN+ do Rio de Janeiro, explorando a influência da cultura ballroom, nascida na década de 1960, em Nova York. Ao final da exibição (sábado, 22h40), será realizada performance do Coletivo Ballroom Litoral Norte.

Com “Alma Negra, do Quilombo ao Baile”, o cineasta Flávio Frederico (“Caparaó”, “Boca”, “Assalto na Paulista”, “Rumo”) retrata, além dos aspectos musicais, “o movimento de valorização da cultura negra e a luta política contra o racismo, buscando nos quilombos e nos bailes de soul, um retrato da alma da negritude brasileira”.

Entre os curtas afro-brasileiros, vale destacar “Na Volta Eu te Encontro”, da baiana Urânia Munzanzu. O filme se situa “em cidade fortemente influenciada pelas revoltas caribenhas”. Seus habitantes tomam “as ruas para comemorar a festa da independência e a liberdade de seu povo preto e indígena”. Embora a sinopse pareça ambientada em lugar abstrato, o público perceberá, na hora, tratar-se de uma vibrante Bahia de São Salvador, e dos festejos do Dois de Julho, data em que o povo da Bahia derrotou insistentes tropas portuguesas, pouco dispostas a abandonar a rica colônia tropical. Depois do Sete de Setembro (de 1822), quem assegurou, para valer, a independência do Brasil foram os rebelados de Cachoeira, Salvador e outras cidades da terra de Maria Felipa, Maria Quitéria e Joana Angélica. O triunfo se deu em julho de 1823.

“Sukande Kasáká | Terra Doente”, de Kamikia Kisedje e Fred Rahal © Christian Braga Fred

O longa-metragem “Mundurukuyü – A Floresta das Mulheres Peixe”, de Beka Saw, Rilcélia Akay de Souza e Aldira Akay (todas da Nação Munduruku) dialoga com curtas-metragens também empenhados em destacar a produção de povos originários, cada vez mais próximos das câmaras. E dispostos a revelar suas imagens, problemas e cosmogonias.

O povo Munduruku, que veremos em “A Floresta das Mulheres Peixe”, luta para defender seu território diante das pressões de grandes projetos de infraestrutura e das invasões de atividades ilegais. O filme se propõe a empreender “mergulho no cotidiano e nos desafios vividos por sua comunidade, abordando a relação dos indígenas com a floresta”. E o faz, “mesclando material de arquivo, animações, montagem com cortes de impacto, cenas subaquáticas e imagens colhidas com drone”.

Os curtas “Sukande Kasáká|Terra Doente”, de Kamikia Kisedje e Fred Rahal, e “Donas da Terra”, de Ana Marinho, enriquecem o núcleo indígena. O primeiro, mostra o povo Khĩsêdjê, obrigado a abandonar sua maior aldeia após detectar a contaminação por agrotóxicos, que envenena suas terras, rios e alimentos. Cercados por monoculturas de soja, “eles lutam para proteger sua cultura, suas famílias e seu território, enfrentando inimigo invisível que ameaça sua existência”. Este filme foi premiado nos festivais É Tudo Verdade, na Mostra Ecofalante de Cinema e na Mostra Indígena e de Povos Tradicionais do FICA (Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental de Goiás).

“Donas da Terra”, da jornalista Ana Marinho, traz registro etnográfico e foi realizado durante trabalho de campo na Aldeia Indígena Xokó, localizado a 200 km de Aracaju. A realizadora busca trazer à superfície “narrativas femininas sobre a luta da retomada da terra”.

Outros cinco longas-metragens – como “Maestra”, da mineira Bruna Piantino – estarão nas sessões diárias do Esporte Clube Ilhabela. Todos eles com passagens por importantes festivais, ou já lançados no circuito comercial: “Tijolo por Tijolo”, de Victória Álvares e Quentin Delaroche, “Mambembe”, de Fábio Moura, “Criaturas da Mente”, de Marcelo Gomes, e “Ritas”, de Oswaldo Santana. Este documentário desenha retrato da roqueira paulistana e pode orgulhar-se de ter vendido mais de 40 mil ingressos em sua passagem pelos cinemas (quantia superior à de dezenas de obras ficcionais).

O público do Litoral Norte e do Vale do Paraíba vai divertir-se com a irreverência de Rita (ou melhor das múltiplas “Ritas”) Lee. A cantora, compositora, atriz e apresentadora nasceu na Vila Mariana paulistana, em 1947, iniciou-se na banda Os Mutantes, assumiu vitoriosa carreira solo e, ao longo de quase cinco décadas, conquistou legião de fãs (até morrer, vítima de câncer, em 2023). Mas Oswaldo Santana não quer falar de morte. E sim da alegria que a roqueira irradiou em shows, na TV, em filmes e, especialmente, em performances irreverentes. Até enfrentando policiais em um de seus shows.

“Maestra”, de Bruna Piantino, é uma produção recente, vinda de Minas Gerais. A realizadora acompanhou, ao longo de seis anos, o cotidiano de uma rara mulher dedicada à função de mestre-de-obras, posição-chave na construção civil. Ao revelar “como o trabalho de sua protagonista combina cálculo, força e um certo jeito de corpo”, a cineasta reflete sobre “os espaços das mulheres no cotidiano e na construção das cidades”.

Por fim, vale lembrar aos interessados num passeio turístico-cinematográfico, que Ilhabela situa-se a 200 quilômetros da capital paulista. É o município com maior percentual de Mata Atlântica preservada do Brasil (80% do território) e reúne, segundo seus orgulhosos moradores, “algumas das praias mais belas do país, além de cachoeiras, trilhas ecológicas, rica fauna e importante patrimônio cultural”.

MOSTRA NACIONAL

Longas-metragens:

. “Maestra”, de Bruna Piantino (MG)
. “Ritas”, de Oswaldo Santana (SP)
. “Criaturas da Mente”, de Marcelo Gomes (RJ)
. “Alma Negra, do Quilombo ao Baile”, de Flavio Frederico (SP)
. “Salão de Baile: This is Ballroom”, de Vitã e Juru (RJ)
. “Tijolo por Tijolo”, de Victória Álvares e Quentin Delaroche (PE)
. “Mambembe”, de Fábio Moura (GO)
. “Mundurukuyü – A Floresta das Mulheres Peixe”, de Beka Saw, Rilcélia Akay de Souza e Aldira Akay (todas da Nação Munduruku)

CURTAS NACIONAIS

. “Na Volta Eu te Encontro”, de Urânia Munzanzu
. “Talvez meu Pai Seja Negro”, de Flávia Santana
. “Sobre Plantas, Mãos e Fé”, da Família Ilé Axé Alarokê
. “Domingo no Golpe”, de Lucas Bambozzi e Giselle Beiguelman
. “Donas da Terra”, de Ana Marinho
. “Sukande Kasáká | Terra Doente”, de Kamikia Kisedje e Fred Rahal
. “A Sua Imagem na Minha Caixa de Correio”, de Silvino Mendonça
. “A Nave que Nunca Pousa”, de Ellen Morais

CURTAS REGIONAIS

. “Dança de São Gonçalo – Tradição e Fé”, de Felipe Scapino
. “Djaexá Porã – Um Olhar para o Futuro”, de Adolfo Wera Mirim e Ed Davies
. “Dona Lourdes”, de Maria Sol Aranda
. “Entre Linhas e Lutas”, de Bruna Souza
. “Fernando Bispo, Uma Vida na Arte-Educação”, de Raissa Fernanda
. “Muito Além do Balcão”, de Diego Menezes
. “São Pedro Pescador”, de J. Valpereiro
. “Mini DOC EP Sóis”, de Rafael César

SESSÕES ESPECIAIS

. “Topo”, longa-metragem de Eugenio Puppo
. “O Som da Maré”, filme realizado em oficina da Escola Livre de Cinema Caiçara
. “DÊsGRAÇAs”, da dupla Goraco (animação)

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