“Ausência” registra evasão escolar e “Possessão Suprema” festeja a música afro-caribenha na CineBH

Por Maria do Rosário Caetano, de Belo Horizonte (MG)

Dois documentários marcaram a penúltima noite da principal competição (a Território) da CineBH (Mostra de Cinema de Belo Horizonte) — o mineiro “Ausência” (foto), de Ana Carolina Soares, e “Possessão Suprema”, do colombiano Lucas Silva.

O longa de estreia de Ana Carolina (autora de um cult, o curta “Estado Itinerante”) resulta em alentado registro da vida cotidiana de escola belo-horizontina situada no bairro Taquaril. A instituição é vista no primeiro ano de aulas pós-pandemia do coronavírus.

Já o filme colombiano se apresenta como convulsiva representação do que Lucas Silva define como “Cine Transe”. Ou seja, um amálgama das ideias da fase africana de Jean Rouch e do segundo manifesto de Glauber Rocha (Estética do Sonho).

A fonte referencial de Ana Carolina é o cinema observacional do estadunidense Frederick Weissman, diretor do clássico “Titicut Follies”. E também o francês Raymond Depardon. Ao longo de 150 minutos, a cineasta observa o que acontece em escola pública, ocupada em reconstruir suas relações com alunos adolescentes, professores e funcionários. Afinal, depois de hiato de dois anos (parada exigida pela epidemia do coronavírus), professores se mostram preocupados com a ausência de muitos alunos. E a vice-diretora Daniela, único personagem individual a ganhar relevo na trama, angústia-se ao telefone. Quer saber por que este aluno (ou aquela aluna) está faltando a tantas aulas. Ou evadiu-se de vez. Cabe ao comando das escolas brasileiras encaminhar às autoridades (até ao Bolsa Família) registros de casos de estudantes adolescentes que sumiram das escolas, onde estão matriculados.

Nos dois melhores momentos do filme, duas mães revelarão, com sutileza ou transbordamento, as causas da ausência de seus filhos, desinteressados pela vida escolar. Num deles, uma jovem mãe comparece à Escola Professora Alaíde Lisboa acompanhada do filho. Narra sua luta para motivá-lo a estudar. Lembra seu empenho em possibilitar a ele uma vida melhor. E chora ao constatar que o adolescente não tem mantido relação de franqueza com ela. “Sei que ninguém é santo, todos temos falhas, mas quero que ele me conte tudo”. Ao referir-se a possível uso de maconha pelo filho, a mãe até engole as palavras. “Se ele estiver fumando” — assegura —, “o faz escondido”, sem revelar nada a ela, que aprecia e bebe sua cervejinha, mas nunca passou disso.

Outra mãe, que comparece sozinha à escola, mostra-se tímida frente à incansável Profa. Daniela. De início, revela seu constrangimento em citar a causa das ausências do filho às aulas. Ele, de 16 anos, foi retido, na capital mineira, por tráfico de drogas. O pai foi buscá-lo no centro de recolhimento e o levou para Sabará. Onde também foi detido pelo motivo anterior. O choro embarga a voz da mãe. A professora insiste para que o aluno retorne à escola, que é o lugar dele.

Em debate sobre os ”Estados do Cinema Latino-Americano: As Mulheres no Comando”, Ana Carolina contou que, ao realizar “Ausente”, percebeu que a evasão escolar — antes preocupante pelo sumiço de alunos do sexo masculino — agora se faz notar, também, pela ausência feminina. E tal ausência se dá, especialmente, pelo crescimento de casos de gravidez na adolescência.

No filme, a Profa. Daniela conversará, por telefone (ela passa o dia buscando avós, tias, enfim, responsáveis pelos alunos e a eles próprios) com mãe e estudante (que tornou-se mãe adolescente) e, por isso, teve que abandonar as aulas. A intenção da vice-diretora é planejar atendimento especial para que a aluna-mãe não sofra defasagem em seus estudos.

“Ausente” foi filmado ao longo de um ano (2022). Começa com a chuva tamborilando no telhado de zinco da escola, bem-equipada e limpa. Tudo começa no verão. E seguirá pelo outono, inverno e chegará à primavera, quando atividades culturais (dança, canto, visita ao Museu de Artes e Ofícios) enriquecerão o currículo fechado entre quatro paredes.

O Cine Humberto Mauro, no Palácio das Artes, palco da Mostra Território, estava lotado. “Ausente” foi o filme com maior presença de espectadores. 45 deles eram adolescentes da Escola do Taquaril. Eles enfrentaram com galhardia as duas horas e meia da narrativa. Riam quando a câmara captava um deles em sala de aula (ou fora dela, em aulas de educação física, no recreio ou na hora da merenda).

No debate do documentário, dos mais movimentados (teve que ser interrompido, pois já passava da meia-noite), Ana Carolina lembrou seu maior desafio — filmar um universo de mais de 150 pessoas (alunos e professores, em especial). Decidiu não trabalhar (perfilar) apenas quatro ou cinco personagens isolados, pois sua intenção era mostrar “a evasão no campo sistêmico”, o que se passava no dia-a-dia de uma escola periférica de uma grande metrópole.

Como o filme custou apenas R$150 mil (o orçamento médio de um documentário brasileiro é de R$500 mil), a realizadora sabia de sua “falta de fôlego” para mergulhar na vida de poucos personagens. Afinal, essa opção exigiria acompanhamento muito intenso e dispendioso. Para registrar o cotidiano da Escola Alaíde Lisboa, ela e sua pequena equipe frequentaram a instituição duas vezes por semana. Uma vez para pesquisa, a outra para filmagem. Foram, portanto, 42 dias de registros fílmicos.

O material colhido foi montado e remontado ao longo de dez meses, pela própria Ana Carolina, em parceria com Carlos Henrique Roscoe. “O instigante do cinema observacional” — ponderou ela — “é que podemos trabalhar diversos roteiros durante o processo de montagem”.

A primeira versão do filme ultrapassou as três horas. Foi mostrada aos professores, à vice-diretora e, “seria exibido” para as mães. Só que estas, convidadas, não compareceram. Ana Carolina tem sua explicação para tal ausência: “elas tinham outros compromissos e, ao contrário do que pensamos, pois dedicamos imensa atenção ao cinema, para elas (e boa parte da população brasileira), o cinema não é muito importante, não faz parte de suas vidas”.

A documentarista contou com sólida assessoria jurídica para evitar que o filme desrespeitasse itens do Estatuto da Criança e do Adolescente. Evitou, também, prejudicar os sobrecarregados professores, submetidos, além de suas duras cargas horárias, à imensa (quase kafkiana) burocracia do Estado. Todas as pessoas que aparecem no filme autorizaram o uso de suas imagens e testemunhos.

Uma professora, Patrícia Cláudia, que assistiu ao filme e participou do debate, lembrou que “Ausente” será de grande importância daqui a 50 anos, pelo registro do dia-dia de uma escola brasileira. Mas duvidou que o filme tenha sobrevida em nosso circuito exibidor por sua longa duração, pelo uso de siglas só familiares ao meio educacional e pela “angústia” que pontua sua narrativa. Até “Tempo Perdido”, da Legião Urbana, cantada inteira por uma aluna, ganha registro “em tom de funeral”.

Ana Carolina concordou que a existência do filme no circuito comercial deverá ser breve. “Talvez numa sessão vespertina, às 13h, por uma ou duas semanas, em algumas salas”. Mas lembrou que há outros espaços para exibição de “Ausentes”. Citou “a Assembleia Legislativa de MG, para todos os parlamentares saberem o que se passa numa escola”, para movimentos sociais organizados, escolas públicas e privadas. E arrematou: “fiz questão de realizar um filme que tivesse estilo, um filme de imersão, não de informação”.

O colombiano “Possessão Suprema” se dá em registro oposto ao do documentário mineiro. Seu diretor, o elétrico Lucas Silva, filho dos cineastas Marta Rodriguez e Jorge Silva, causou espécie com sua “ópera musical afro-caribenha”. Ele uniu músicos “palenqueros”, oriundos de San Basílio do Palanque, cidade plantada na região de Cartagena de Índias, para evocar a história de Benkos Biohó, líder de escravizados trazidos da África para o Caribe.

Os músicos reencarnam a história da rebelião dos palenques, ou cimarrones, por nós identificados como quilombolas. Ou seja, aqueles que abandonaram plantações ou minas para, unidos, lutarem contra seus exploradores.

Lucas Silva definiu Benkos Biohó como “o Simon Bolívar afro-colombiano”. Para interpretá-lo, com liberdade total, foi convocado o músico Víctor Cimarra. Ele comandará os “palenqueros”, espécie de exército rebelde, e fundará “a primeira cidade livre das Américas”.

Tudo no filme, garantiu o diretor, é fruto de “criação coletiva”. Ele e seus músicos-atores queriam “reinventar a história”. O resultado, que ele definiu como “soma de etnoficção, improvisação e teatro experimental”, não deve agradar a muitos. Só um dos componentes do filme se mostra irresistível: a música vibrante dos artistas do “palenque” (de suas origens nos tempos coloniais até o sound system da Colômbia contemporânea). Do tambor às mais avançadas tecnologias.

Há poucas mulheres no documentário colombiano. O irrequieto realizador prometeu abrir espaço nobre para elas em seu próximo filme. E, incansável, definiu sua Colômbia natal como “um país tomado por estranha e perpétua loucura”. E mais: “uma grande comédia sem sentido e marcada por gritantes contrastes”.

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