Festival de Gramado – Paulo Betti e drama argentino

Por Maria do Rosário Caetano, de Gramado

O Festival de Gramado apresentou mais quatro concorrentes aos troféus Kikito, que serão entregues na noite deste sábado, com transmissão ao vivo pelo Canal Brasil: os longas “A Fera na Selva”, de Paulo Betti, Eliane Giardini e Lauro Escorel, e o argentino “Sinfonia para Ana”, primeira ficção da dupla de documentaristas Virna Molina e Ernesto Ardito, e os curtas “Telentrega”, de Roberto Burd, e “Sal”, de Diego Freitas.

O Palácio dos Festivais estava lotado e era grande a expectativa diante do segundo longa de Betti, baseado em narrativa homônima de Henry James. O diretor e coprotagonista do filme subiu ao palco na companhia de Eliane Giardini, do diretor de fotografia Lauro Escorel e de outros integrantes da equipe. O que se viu na tela foi definido no debate, na manhã seguinte, como um “ovni cinematográfico”. Ou seja, um filme pouco comum em nossa cinematografia, já que não nega suas fortes marcas teatrais (Betti e Eliane excursionaram pelo país, nos anos 1990, com adaptação teatral do mesmo texto de James) e sua origem literária (José Mayer empresta sua bela e aliciante voz a narrador off, que comenta o que vemos).

Para colocar mais perturbação na recepção do público, Betti e Eliane ambientaram “A Fera na Selva” em Sorocaba, município de 650 mil habitantes (o quarto mais populoso do Estado de São Paulo), que orgulha-se de ser a “Manchester caipira”. Em tom naturalista, são mostradas paisagens verdejantes (que Lauro Escorel registra com grande maestria), monumentos arquitetônicos (grandes fábricas, a Estação Ferroviária, a igreja, centros culturais e um cruzeiro incrustado em morro muito alto), além de manifestações da cultura local. A este ambiente natural e artístico, são acrescentados os longos (e filosóficos) diálogos do texto de Henry James, traduzidos por Fernando Sabino.

Perguntou-se a Betti se ele conseguira somar o municipal (a região onde cresceu e com qual mantém laços profundos) ao universal (o texto do escritor anglo-saxão). O ator-diretor disse acreditar que sim. Quando alguém ponderou que o filme deve ter vida dura no mercado, por ser um “ovni cinematográfico”, Eliane Giardini disse que não se incomodava com isto. “Se o filme for visto nos festivais, cineclubes e em salas como o Estação Botafogo e Espaço Itaú, já estaremos contentes”. “Ah, não” – protestou Betti, em tom missionário. “Fizemos este filme para ser visto por muitos. E disso estou cuidando com empenho total. Em cada cidade que visito para mostrar a peça ‘Autobiografia Autorizada’, me reúno com o público, falo do filme e anoto e-mails para envio de material que vai da peça ao texto literário de James, mais fotos, trailer, enfim, tudo que se relaciona com o filme. Já tenho 5 mil pessoas catalogadas, que acompanham cada um de nossos passos. A exibição em Gramado foi por todos comemorada”. “E tem mais” – acrescentou – “eu quero que o filme bata recorde de bilheteria em Sorocaba, que permaneça em cartaz por várias semanas, que seja discutido por todos os moradores desta região, onde Eliane e eu nascemos e crescemos”. Afinal, “mobilizamos toda a cidade na produção do filme, conseguimos a proeza de colocar sorocabanos num longa-metragem de apenas dois personagens, Maria e João. Na cena da sala de espera do hospital, estão muitos de meus irmãos, mais velhos que eu, nos festejos nas ruas, estão figuras emblemáticas como Janice Vieira, a noiva do acordeon. Revivemos no filme coisas maravilhosas de nossa infância como o ‘balão galinha’ (um balão junino que sobe como uma tocha de fogo)”. Betti lembrou, ainda, que o ‘balão galinha’ do filme é também uma citação amorosa a “Macunaíma”, montagem de Antunes Filho, “a mais importante e seminal do teatro brasileiro”.

Os atores-diretores Betti e Eliane não conhecem o texto teatral que Marguerite Duras escreveu a partir da narrativa de James, nem o filme que Benoît Jacquot realizou. “Nossa montagem teatral” – explicou Eliane – “foi escrita por Luís Arthur Nunes, a partir da tradução de Fernando Sabino. E ela nos serviu de ponto de partida para o roteiro do filme, que recebeu mais de uma dezena de tratamentos”. Betti, por sua vez, contou que viu e reviu “O Quarto Verde”, de Francois Truffaut (“um ovni truffautiano”?), filme que tem muito a ver com “A Fera na Selva”.

Golpe de 1976

Molina e Ardito, os diretores de “Sinfonia para Ana”, são conhecidos na Argentina por filmes documentais, em especial por “Raymundo”, sobre o cineasta Raymundo Gleyzer, um dos desaparecidos políticos no período da ditadura militar (1976-1983). Este longa foi exibido em diversos festivais e ganhou muitos prêmios.

“Sinfonia para Ana”, baseado em autobiografia de Gaby Meik, primeira incursão da dupla no cinema ficcional, desenvolve-se no começo dos anos 1970, tendo o Colégio Nacional de Buenos Aires, a duas quadras da emblemática Plaza de Mayo, como principal cenário. Nele, estudam Ana e dezenas de secundaristas, boa parte deles envolvida com movimentos de esquerda (Montoneros, maoístas etc). Até que, em 1976,  um golpe militar derruba a presidente Isabelita Perón (viúva do General Juan Domingo Perón, que falecera no poder, em 1974). A perseguição aos movimentos de esquerda, os derrotados, esfacela os grupos e destrói relações de amizade ou amorosas, já que muitos foram mortos ou para o exílio.

A primeira parte do filme – narrada pelo olhar da adolescente Ana, que ama Lito e é amada por Camilo – alcança ótimo resultado. A dupla de realizadores localiza bem seus protagonistas adolescentes no tradicional, imponente e belíssimo Colégio Nacional, contextualiza a narrativa (com uso de poderosas imagens de arquivo) e desenha bem os conflitos políticos e amorosos. Mas, quando o golpe de 1976 triunfa e os militares destroçam as instituições e as vidas dos jovens estudantes, o filme caiu num romantismo choroso. Um verdadeiro cinema de lágrimas.

Os cineastas, que conquistaram o Prêmio da Crítica no Festival de Moscou, argumentam que “o tom não é lamurioso, mas sim doloroso”. Com o golpe, “os jovens perdem sua alegria e razão de viver e passaram a sofrer as duras consequências do desmantelamento de seus sonhos”.

“Sinfonia para Ana” será lançado na Argentina em outubro próximo, com 30 cópias, no circuito de arte, mas também nos multiplex. Ainda não foi comprado por nenhum distribuidor brasileiro.

Programação intensa

Tem-se de Gramado e de seu festival de cinema (brasileiro e latino) imagem que soma tapete vermelho, glamour e badalação. Esta imagem é superficial. Quem consultar com atenção a imensa programação do festival gaúcho verá que ele se compõe com dezenas de seminários, debates, encontros, reuniões e lançamentos de livros. Há, portanto, além das mostras competitivas muito o que fazer no terreno das mostras paralelas e dos debates reflexivos.

Quem quiser se relacionar com o festival, indo além do desfile de artistas no tapete vermelho da imensa rua coberta (ela desagua no Palácio dos Festivais, complexo de sala de mil lugares, Museu do Cinema e restaurante) terá muitos filmes em mostras paralelas e muitos debates e seminários para acompanhar.

Na tarde da última terça-feira, 22 de agosto, cineastas hispano-americanos somaram-se a alguns brasileiros para passar quatro horas debatendo rumos para o cinema latino-americano em seus mercados internos e, também, externos. O centro de duas mesas de debate foram o chileno (radicado nos EUA) Pablo Zurita, a argentina Eva Piwowarsk, uma das curadoras do festival (com Rubens Ewald Filho e Marcos Santuário) e o produtor e distribuidor gaúcho, Beto Rodrigues (da Panda Filmes, fomentadora de parcerias cinematográficas entre brasileiros e hispano-americanos). Além de lançar seu livro “Road-Book do Cinema Latino-Americano (citação explícita ao “filme de estrada”, o “road movie”, ou “cine de carretera”), Zurita evocou a importância do Festival de Viña del Mar, que está completando 50 anos, na “criação de um pensamento em defesa do cinema latino-americano”.

Num segundo momento, antes de autografar seu livro, o pesquisador chileno fez palestra sobre os cineastas que compõem sua coletânea de entrevistas (alguns deles brasileiros, como Tata Amaral, José Jofilly e Jorge Durán), chilenos (como Patricio Guzmán), argentinos (Eliseo Subiela), mexicanos (Maria Novaro e Carlos Carrera), cubanos (Fernando Pérez), peruanos (Francisco Lombardi) e também de cinematografias emergentes como as centro-americanas (Honduras, Nicarágua etc).

Nesta quarta-feira, 23, a maratona segue com palestra do peruano Isaac Leon, debate sobre a trajetória de Jean-Claude Bernardet (e lançamento do livro “Bernardet 80”), encontro sobre a participação da mulher na crítica e na realização cinematográfica, mais debates entre produtores latino-americanos e canadenses, exibição de filmes convidados (da Argélia, da Itália e, claro, do Canadá), exibição de filmes na Mostra Gramado 45 Anos (depois de, entre outros, “Desarquivando Alice”, de Betse de Paula, será a vez de Oswaldo Massaíni – Uma Paixão pelo Cinema”, dirigido por Anibal Massaini, filho do coprodutor de “O Pagador de Promessas”, Palma de Ouro em Cannes de 1962.

Para completar o quadro, o festival promove o Gramado Film Market – Conexões, evento que reúne produtores internacionais e brasileiros de cinema e TV em busca de parcerias e novos negócios. Como as sessões, compostas com dois curtas e dois longas-metragens (um brasileiro e um hispano-americano) e múltiplas homenagens terminam depois da meia-noite, o que menos se faz aqui é badalar. Apreciar um fondue com vinho num restaurante tradicional, então, virou extravagância. Até porque a maioria deles cerra suas portas à meia-noite.

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