Fassbinder: Ascensão e Queda de um Gênio

Por Maria do Rosário Caetano

O título escolhido para batizar a cinebiografia germânica de Rainer Werner Fassbinder é perfeito: “Enfant Terrible”. O título brasileiro – “Fassbinder: Ascensão e Queda de um Gênio” – traz um certo exagero, mas estimula o público a reencontrar o louco integrante da onda renovadora que varreu o cinema alemão na década de 1970. Aquele movimento exuberante, no qual brilharam, além do diretor de “Lili Marlene”, os ousados Werner Herzog, Wim Wenders e Alexander Kluge.

Fassbinder, o mais alucinado e iconoclata de todos os integrantes da nouvelle vague germânica, ajudou a colocar abaixo o academicismo e caretice então dominantes no cinema de seu país. Quem assistir a “Ascensão e Queda de um Gênio” – estreia dessa quinta-feira, 26 de agosto – terá farto material para relembrar o enfant terrible, que assinou 43 filmes, 24 peças teatrais (uma delas, “As Lágrimas Amargas de Petra von Kant”, causou furor no Brasil) e duas séries de TV (uma delas, a poderosa “Berlim Alexanderplatz”). Tudo isso em apenas 15 de seus curtos 37 anos.

O filme de Oskar Roehler, uma ficção de pouco mais de duas horas, concentra sua narrativa no Fassbinder adulto. Gordo, desleixado, ele trabalha dia-e-noite sem parar, apaixona-se por parceiros complicadíssimos e sorve doses infinitas de todos os líquidos alcóolicos que estejam ao seu alcance. Depois, com a descoberta da cocaína, irá mergulhar de cabeça (e nariz) no novo vício. Vício que o matará, por overdose (suicídio?), um mês depois de completar 37 anos.

Rainer Werner Fassbinder foi um homem de excessos, capaz de realizar sete filmes em um único ano. Se amava, era sem medidas. Se brigava, idem. Trabalhar, então, era o mais alucinado dos seus vícios. Aos que sugeriam que ele dormisse, costumava responder: “quando morrer, dormirei o bastante”.

Oskar Roehler escreveu o roteiro de “Ascensão e Queda de um Gênio” em parceria com Klaus Richter. Mesmo sendo obra ficcional, os dois poderiam ter dado mais destaque aos processos criativos do artista, por mais anárquicos que fossem. Mas a ênfase recai sobre a vida louca do bávaro (nascido em Bad Worishofen, em maio de 1945).

A dupla de roteiristas cita, pelo menos, quatro dos cineastas que inflenciaram o alemão: Jean-Luc Godard, Orson Welles, Douglas Sirk e Raoul Walsh, com quem dialogou em seu primeiro filme, “O Amor É Mais Frio que a Morte” (1969). Do conterrâneo Sirk, cujo auge criativo se deu nos EUA, Fassbinder herdou o amor pelo melodrama, que praticou com empenho. Mas temperando-o com doses corrosivas de senso crítico. Afinal, o bávaro encharcou-se, também, com os princípios que nortearam outro conterrâneo ilustre, Bertolt Brecht (1898-1956).

Para dar vida ao diretor de “O Medo Devora a Alma”, Oskar Roehler escolheu o ator Oliver Masucci (“Dark”), astro germânico de 52 anos. Opção arriscada, pois cabe a Masucci interpretar Fassbinder dos 20 aos 37 anos.

No começo, nos incomodamos com o rosto e a pele do ator, desprovidos do frescor juvenil do enfant terrible. Como a caracterização é boa, o mal-estar passa à medida que Fassbinder engorda, mergulha no álcool e nas drogas e se veste desleixadamente, deixando, muitas vezes, seu barrigão de fora. E sempre, no filme, embalado em ternos tipo “cheguei”, com estamparias imitando peles de leopardo e outros bichos. O Bavarian Film Awards atribuiu a Oliver Masucci o troféu de melhor ator.

Cercado por um entourage de amigos, muitos homossexuais como ele, Fassbinder causava imensos sofrimentos aos que o tinham como parceiro de cama ou trabalho. Atores, atrizes, diretor de fotografia, compositor de trilhas sonoras e técnicos eram obrigados a lidar com o gênio de cão do workaholic alucinado. E a conviver com seus desesperos quando naufragava uma de suas loucas paixões.

Fassbinder amou um ator negro, casado (com uma mulher!), e sofreu horrores. Depois, amou um marroquino (El Hedi Bem Salem), pai de dois filhos. Não se fez de rogado. Ajudou o novo parceiro a sequestrar os filhos e levá-los para a Alemanha. Relação mais tumultuada, impossível, mas pelo menos deixou um grande fruto cinematográfico – “O Medo Devora a Alma” (1974). Nesse drama de imensa força, um imigrante de pele escura (Bem Salem) mantém relacionamento com a personagem de Brigitte Mira, bem mais velha que ele e de pele alva. A rejeição a esse par inesperado seria imensa.

A ficção de Oskar Roehler concentra, em demasia, seu foco nos excessos de Fassbinder. Ele ama full time, bebe e se droga sem repouso e trabalha, intuitivamente, seja dia, seja noite. E vai passando como um trator sobre seus colaboradores. Garante o folclore que o cineasta (e dramaturgo) estimulava as atrizes agregadas a seu grupo cênico (o Teatro de Ação) a se prostituírem para arrumar grana e, assim, ajudar na produção de seus filmes (mesmo que de orçamentos baixíssimos).

“Ascensão e Queda de um Gênio” não dá nome às mulheres que cercaram Fassbinder. Concentra sua narrativa em seu desmedido protagonista. Hanna Schygulla, hoje com 77 anos, pode ser reconhecida entre as poucas mulheres vistas no filme. Mas não é nominada. Sua participação é secundaríssima. Já Ingrid Caven, 83, que teria sido mulher de Fassbinder (de 1970 a 1972), é o ombro amigo do artista, até seu trágico fim. Tem falas e certo destaque.

Em compensação, serão duas atrizes as responsáveis por dar cabo a uma das loucuras do cineasta. Uma travesti “tia velha”, que mantinha antiga relação amorosa com Fassbinder, implorava por seus carinhos. Mas o cineasta já estava ocupado com novas conquistas.

Vegetariana, a velha se submeteria a comer carne para, em troca, ganhar uma noite que fosse, com o amado. O alimento provoca-lhe vômitos. Sádico, Fassbinder afirma que a aposta não teria validade. Afinal, ela vomitara. Aquele circo de horrores indigna as jovens, que retiram a personagem humilhada daquele freek show ambientado num restaurante.

Outro momento que dignifica a (rala) participação feminina no filme é protagonizado por Brigitte Mira (1910-2005), magistralmente interpretada pela herzoguiana-fassbinderiana Eva Mattes (hoje com 66 anos). Ela, Brigitte, conta ao cineasta que o filme (“O Medo Devora a Alma”) fora aplaudido por 17 vezes, em projeção aberta, durante sua exibição em importante festival.

Quem conviveu com Fassbinder diz que a meta dele era ganhar, num mesmo ano, a Palma de Ouro, em Cannes, o Leão, em Veneza, e o Urso, em Berlim. E depois, o Oscar de filme estrangeiro. Só teve tempo para ganhar um desses cobiçados troféus: o Urso de Ouro na Berlinale, com “O Desespero de Veronica Voss”. A láurea chegou em fevereiro de 1982. No dia 10 de junho, ele estava morto. Sobrara “Querelle”, seu filme derradeiro.

Em sua ficção, Oskar Roehler mostra um Fassbinder muito crítico com sua própria obra. Afinal, o cineasta-dramaturgo acreditava não ter realizado nenhuma obra-prima. Ambicioso, queria superar “O Casamento de Maria Braum”, “Lili Marlene” e “Lola”, sua trilogia alemã, “O Desespero de Verônica Voss”, que virou cult no Brasil, e “Berlim Alexanderplatz”, para muitos sua maior realização (nos sentidos quantitativo e, principalmente, qualitativo).

Quem quiser ver outro filme sobre Rainer Werner Fassbinder deve assistir ao documentário “Amar sem Demandas”, de Christian Braad Tomsen, ou ler pelo menos três livros sobre sua breve, produtiva e louca existência – “Anarquia da Fantasia”, dele mesmo, “O Amor é Mais Frio que a Morte”, de Roberto Katz, e “A Vida Sufocante”, de Harry Bauer, todos editados no Brasil. O primeiro pela Zahar, e os dois últimos pela Brasiliense.

 

Fassbinder: Ascensão e Queda de um Gênio | Enfant Terrible
Alemanha, 122 minutos, 2020
Direção: Oskar Roehler
Elenco: Oliver Masucci, Hary Prinz, Katja Riemann
Nos cinema e Cinema Virtual (para assistir, no streaming, o interessado deve acessar a plataforma pelo NOW. Ou escolher a sala de exibição preferida em www.cinemavirtual.com.br, realizando a compra do ingresso. O filme fica disponível durante 72 horas.)

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