“Confissões de um Sofredor” desenha potente retrato de Lupicínio Rodrigues
Por Maria do Rosário Caetano
“Lupicínio Rodrigues – Confissões de um Sofredor”, documentário que marca a estreia de Alfredo Manevy no longa-metragem, é forte candidato a representar o Brasil na disputa pelo Troféu Bandeira Paulista, prêmio máximo da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, dedicada a revelar novos realizadores (de até segundo filme).
O que se viu na imensa tela do Espaço Itaú Frei Caneca foi um filme de ideias, em diálogo com a história da música popular brasileira e de nosso cinema. Com a força do samba-canção, em sua vertente dedicada à “cornitude” mais radical, e valorizada por imagens de filmes como “Rio Zona Norte”, “Alô, Alô Carnaval”, “Berlim na Batucada” e “Exemplo Regenerador”. Sem falar em trechos raros de cinejornais da Porto Alegre do início do século XX até programa de João Gilberto na TV Tupi/1971. E da antológica participação de Elza Soares, com seu vestido arrematado em miçangas balançantes num filme de Amácio Mazzaropi.
Mesmo num país desmemoriado, a equipe de pesquisa do documentário, comandada pelo jornalista Lucas Nobile (“Garoto” e “Raphael Rabelo”) foi incansável e desenterrou arquivos visuais de imenso valor (mesmo que algumas imagens – poucas, felizmente — estejam em petição de miséria: caso da participação de Lupe num Programa Flávio Cavalcanti).
O filme já chega chegando. A primeira imagem na tela traz o rosto em close de Caetano Veloso. Ele inicia os versos de uma canção de Lupicínio Rodrigues, gaúcho de Porto Alegre, nascido na Vila (favela) da Ilhota, em 16 de setembro de 1914, para morrer em agosto de 1974, aos 59 anos. Ainda em close, vemos Marisa Monte e Arto Lindsay sequenciando os versos, depois Ney Matogrosso, Paulinho da Viola e o canto furioso de Arrigo Barnabé. O impacto é imenso.
O próprio Lupe começa a contar ao Museu da Imagem e do Som a sua vida: onde nasceu, o que era a Ilhota, a vida militar, prisão de oito dias, pois compôs música debochando do “rancho” (charque com farinha”) do quartel, etc. Ninguém tema, porém, um filme convencional, daqueles nascimento-vida-e-morte, com muitas “cabeças-falantes” se sucedendo. Muitos falarão (e sem identificação!, os impacientes que aguardem lista imensa – e rápida – ao final).
“Confissões de um Sofredor” terá sua matéria-prima nos testemunhos do próprio artista. Lupe falará de amores, de seus muitos amores. E explicará por que escreveu versos rasgados que pregaram “vingança” por paixões frustradas. A narrativa fornecerá imagens (ou voz) de Caetano Veloso, Gal “Tropical” Costa (exuberante e com suas enormes pernas de fora), Gilberto Gil e Bethânia dedicados ao cancioneiro do poeta gaúcho. Os quatro baianos amaram e amam o desmedido versejador da “cornitude”. Aquele que Cazuza (1958-1990), outro admirador, dizia ter coragem de dizer tudo que queria, sem amarras, sem limites, sem constrangimentos.
Zuza Homem de Mello (1933-2020), estudioso do samba-canção, tem ótimas intervenções no filme. E lembrará o imenso sucesso de Lupe na boate Oásis, frequentada por grã-finos paulistanos. Por que um artista negro, gaúcho, chegou a São Paulo para curta temporada e permaneceu meses em cartaz? “Porque a ‘cornitude’ cala fundo” em todas as classes sociais. Famoso estudo de Augusto de Campos sobre o compositor de “Nervos de Aço”, “Vingança” e “Cadeira Vazia”, também ganha no filme significativa ressonância.
Jamelão (1913-2008), que dedicou um disco inteiro a Lupicínio Rodrigues – que Jards Macalé considera um dos mais importantes de nossa milionária música popular –, aparece em imagens vermelhas e potentes. E com sua voz de imenso intérprete que sempre foi. Jamais de “puxador” de samba. “Puxador”, dizia o grande (e rigoroso) sambista, era coisa bem diferente.
Alfredo Manevy e sua equipe são – como Verissimo, outro gaúcho de quatro costados (torcedor colorado e não gremista como Lupe, autor do Hino tricolor) – devotos de Nossa Senhora do Contexto. O filme situa Lupicínio em seu tempo histórico e na geografia que o acolheu. Por isto, não vai ao anacronismo de ler seus versos, machistas aos olhos contemporâneos, com as lentes do agora. Quem os enunciou foi um homem negro, pobre, favelado, nascido em família de 25 filhos, que amou mulheres (muitas delas brancas e melhor situadas na escala social) que o deixaram por casamentos “melhores”. Ele vingou-se da rejeição com versos paroxísticos, em madrugadas infindas consumidas em mesas de bares.
O racismo ganha, no documentário, o merecido destaque. Neste momento em que o cantor, compositor e ator Seu Jorge, em pleno século XXI, sofre discriminação num clube portalegrense, “Confissões de um Sofredor” conta que Lupe foi a um bar gaúcho, com um amigo. O local estava vazio. E o o garçom não o atendeu.
Por que? A resposta: “temos ordem para não atender a clientes negros”. De quem é a ordem? “Do nosso patrão”. Chamaram o patrão, que confirmou. Recorreu-se à Lei Afonso Arinos. De relance, dá para ler na página de um jornal, argumento do dono do bar: “não sabia que Lupe era preto”.
O primeiro e grande sucesso de Lupicínio – “Se Acaso Você Chegasse” – estourou com Cyro Monteiro. Depois revelou Elza Soares. Ela arrasa com uma de suas histórias folclóricas sobre Lupe e seus olhos “pidões”. Depois, Linda Batista, amiga do gaúcho Getúlio Vargas, transformaria “Vingança” em sucesso mundial. A composição renderia tanta grana em direitos autorais, que o autor compraria um carro bacana, o mais bonito de Porto Alegre.
Não faltam boas histórias à vida do autor de “Esses moços, pobres moços, ah, se soubessem o que eu sei, não amavam, não passavam, aquilo que eu já passei…”. Algumas delas têm a ver com Francisco Alves (1898-1952). E ganham relevo no filme, quando representadas pelas imagens de “Rio Zona Norte” (Nelson Pereira dos Santos, 1957), na figura negra de Grande Otelo (Espírito da Luz) e de Paulo Goulart. Muitas camadas se revelam ali. Há um diretor estreante que pensa, que dialoga com a MPB e com o cinema brasileiro, que se cerca de profissionais que sabem que antes deles atuaram gerações que se compuseram com Alinor Azevedo, Moacyr Fenelon, José Carlos Burle, Watson Macedo, Alex Viany, Nélson Pereira dos Santos e outros nomes tão bem estudados no livro de Luis Alberto Rocha Mello (“Alinor Azevedo e o Cinema Carioca”, Editora UFMG, 2002). “Lupicínio Rodrigues – Confissões de um Sofredor” filia-se a essa tradição.
Um comentário final: ao apresentar o filme ao público na noite de sábado, 22 de outubro, no Espaço Itaú Frei Caneca, Alfredo Manevy, um dos criadores e primeiro diretor da Spcine falou da importância da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e de sua importância para a metrópole paulistana. E de sua alegria de realizar a primeira sessão pública (a estreia) do filme no evento. Dedicou a sessão a Zuza Homem de Mello, representado na sala por sua viúva Ercília, e a Elza Soares, ambos importantíssimos na feitura do filme. Depois de assistir ao documentário, gaúcho até a medula (o portalegrense Lupe morou em Santa Maria, assistimos a significativo registro da Procissão do Senhor dos Navegantes, a família do artista segue radicada e arraigada à capital do Rio Grande do Sul, etc.), uma pergunta nos ocorre: por que o campineiro-uspiano Manevy (hoje professor da Universidade Federal de Santa Catarina) não guardou o filme para o Festival de Gramado?
Brasil, 96 minutos, 2022
Lupicinio é um dos gênios da MPB. Um dos melhores. Grande compositor. Um homem antenado com seu tempo. Não deve ser esquecido nunca. Suas obras são eternas. Parabéns.