“Eu, Capitão” é o grande vencedor do Prêmio David di Donatello, o “Oscar italiano”
Por Maria do Rosário Caetano
“Eu, Capitão” (foto acima), de Matteo Garrone, representante da Itália na competição pelo Oscar de melhor filme internacional em março último, foi o grande vencedor da sexagésima-nona edição dos Prêmios David di Donatello, distribuídos anualmente pela Academia do Cinema Italiano. Ganhou sete das 15 estatuetas que disputava.
Já “Ainda Temos Amanhã” (“C’è Ancora Domani”), estreia da atriz Paola Cortellesi na direção, converteu apenas seis de suas 19 indicações. E perdeu nas categorias principais (filme e direção) para o épico de Garrone, diretor do formidável “Gomorra”.
Parte da imprensa italiana esperava que o blockbuster de Cortellesi, também protagonista do filme e uma de suas roteiristas, batesse recordes na noite do Donatello. Afinal, a produção, ignorada pelos grandes festivais, resultou em espantoso fenômeno de público. Vendeu 5.534.653 ingressos nesse momento em que a indústria cinematográfica se recompõe dos estragos da pandemia.
Dos cinco finalistas ao “Oscar italiano”, outro título somou boa quantidade de troféus — o drama histórico “O Rapto”, do mestre Marco Bellocchio — que conquistou cinco dos onze Donatello disputados. Incluindo o de melhor roteiro adaptado, que Bellocchio assina em parceria com a cineasta Susanna Nicchiarelli (dos adrenalinados “Nico, 1988”, e “Miss Marx”). Os dois, ele com 84 anos, ela com 48, somaram forças para recriar livro que seria adaptado por Steven Spielberg. Com a desistência do estadunidense, Bellocchio abraçou o projeto. E o fez com êxito.
Coube, pois, ao diretor de “Vincere”, narrar o rapto de criança judia, ocorrido em Bolonha, em 1858. Ela foi batizada às escondidas por babá católica e, por essa “razão”, arrancada do seio familiar pela alta hierarquia da Igreja Católica (incluindo o Papa Pio IX). O batismo fazia dela “uma criança cristã”. Mesmo que seus pais, judeus, ignorassem o feito da cuidadora da criança.
Os filmes “La Chimera”, de Alice Rorhwacher, e “O Melhor Está por Vir”, de Nanni Moretti, que obtiveram bom número de indicações (o primeiro, 13, o segundo, 7 , inclusive a melhor filme), nada ganharam.
O espírito dos votantes da Accademia del Cinema Italiano foi concentracionista. Nada de reforma agrária de troféus. Fora os filmes de Garrone, Paola Cortellesi e Bellocchio, só houve destaque para “Palazzina LAF”, de Michele Riondino. Diretor estreante e protagonista de seu filme, Riodino foi eleito o melhor ator, Elio Germano, o melhor coadjuvante, e “La Mia Terra”, de Diodato, a melhor canção.
O melhor documentário não poderia ser outro. Ou seja, o franco favorito “Laggiù Qualcuno mi Ama” (“Lá Alguém me Ama”), do napolitano Mario Martone. Em pouco mais de duas horas, o diretor do ficcional “A Morte de um Matemático Napolitano” (1992), revê a trajetória do ator (também napolitano) Massimo Troisi (1953-1994). Apesar de ter morrido cedo (aos 41 anos), Troisi deixou muitos filmes e uma corrente de afeto espalhada por toda a Itália. E um filme que comoveu o público peninsular e internacional – “O Carteiro e o Poeta” (Michael Radford, 1994), que protagonizou ao lado de Philippe Noiret (no papel do poeta Pablo Neruda), e da bela Maria Grazia Cuccionotta, musa do modesto funcionário dos Correios. Com sua bicicleta, o ilhéu ocupa-se da entrega da abundante correspondência do escritor e o convence a que ajudá-lo a conquistar, com versos, a mulher amada.
O melhor filme estrangeiro foi “Anatomia de uma Queda”, a mais festejada produção europeia (da francesa Justine Triet) da temporada. Detentor da Palma de Ouro, em Cannes, de dois Oscar (melhor roteiro original e melhor montagem), de seis César (incluindo o de melhor filme), do Bafta, do Goya, enfim, o longa de Triet passou o rodo. Ponto para realização feminina que triunfou na avaliação da crítica e do público dos mais diversos países (quase 1,6 milhão de espectadores na França, 500 mil nos EUA), por méritos próprios e não por ter sido dirigido e escrito (em parceria com Arthur Harari) por uma mulher.
O grande vencedor do Donatello, o drama social de Matteo Garrone, teve recepção crítica controversa. O que é normal, em se tratando de realização de um diretor branco, que optou por contar a saga de dois africanos, os adolescentes Seydou e Moussa. Eles deixam o Senegal, para tentar a vida como rappers na Europa. Um deles, o “Capitão” do título, viverá sua jornada de improvável herói, ao sobreviver a imensos e terríveis desafios no Deserto de Saara e à travessia do Mar Mediterrâneo. Garrone trabalhou com assessoria do imigrante Mamadou Kouassi Adama e somou à sua narrativa realista e crua sequências oníricas de imensa beleza.
“Eu, Capitão” rendeu ao cineasta o Leão de Prata de melhor diretor, em Veneza 2023, e seu protagonista, o jovem Seydoux Sarr, foi reconhecido com o prêmio de ator revelação. E mais: o filme chegou à disputadíssima condição de um dos cinco finalistas ao Oscar internacional, fato muito valorizado por Academias espalhadas pelo mundo (e seguidoras do molde da instituição hollywoodiana).
O grande vencedor do Donatello acompanha a viagem dos primos Seydoux Sarr e Moustapha Fall, que economizam dinheiro para empreender difícil (e custosa) travessia. Sua “estrada” será, primeiro (e na maior parte do filme), o deserto, opção que diferencia a trama de outras produções sobre imigrantes, ambientadas no Mar Mediterrâneo. Os jovens sairão de Dakar, capital do Senegal, passarão pelo Mali, Niger até chegar à Líbia, porta do Mediterrâneo africano.
O cineasta romano, de 55 anos, foge do miserabilismo, sem ignorar temas espinhosos como os maus tratos (incluindo tortura física), a fome, o trabalho em condições de escravidão, enfim, a exploração levada ao paroxismo. A fotografia de Paolo Carnera, premiada com o Donatello, impressiona por sua força e beleza em diferentes momentos. Seja no início da narrativa, quando meninas da família de Seydoux se arrumam para animada festa em logradouro público de Dakar, seja no Deserto do Saara ou no barco superlotado que navega pelo Mediterrâneo. E ganham beleza epifânica em duas sequências oníricas. Numa delas, Seydoux sonha com o “renascimento” de imigrante que morrera no deserto. Noutra revê a mãe, opositora ferrenha do sonho migrante do filho, em cena de troca de afetos.
Os que desqualificam o filme de Garrone o fazem, entre outras objeções, por implicância com narrativas que apresentam cenas gráficas de tortura. E por razão de natureza política. O cineasta-roteirista teria “escondido” o papel dos europeus na tragédia da imigração. Aqueles que colonizaram a África e promoveram o tráfico de escravizados, hoje se negam a receber imigrantes vindos do continente.
A proposta de Garrone, há que se lembrar, centra-se no registro da difícil travessia daqueles que saem das margens do Atlântico rumo ao Mediterrâneo, em busca de vida melhor no países de seus colonizadores. E o filme não é protagonizado por brancos. Mas sim por dois adolescentes negros, um deles, visto como sujeito de sua história, capaz, aos 16 anos e com sua intuição e coragem, de pilotar barco avariado e levar dezenas de imigrantes a um porto italiano. Serão rejeitados pelo governo da primeira-ministra Giorgia Mellone, representante da direita xenófoba, coligada à extrema-direita? “Eu, Capitão”, que tem final aberto, não apresenta, por óbvio, final conclusivo.
O filme de Garrone pode ser visto em plataformas digitais como Apple TV, Google Play, YouTube, Claro TV, Vivo, Loja Prime e Microsoft Store (todos pelo sistema VOD – locação digital).
O blockbuster de Paola Cortellesi “Ainda Temos o Amanhã” tem lançamento garantido no Brasil e, além de ter integrado a programação do 17º Festival de Cinema Italiano, em São Paulo, já ganhou pré-estreia no Belas Artes, na noite em que salas do complexo cinematográfico da Consolação paulistana foram rebatizadas com o nome da atriz Helena Ignez, do crítico Luiz Carlos Merten e do cinéfilo Leo Mendes.
O filme, ambientado em Roma, no pós-Segunda Guerra, mistura drama familiar, comédia e musical, para contar a história de Délia (Paola Cortellesi), casada com o rude Ivano (Valerio Mastandrea) e mãe de três filhos. Ela vive, resignadamente, seu cotidiano de esposa submissa e mãe dedicada. Até que a chegada de carta misteriosa fará despertar sua coragem e ela passará a lutar por melhor destino. Tanto para ela, quanto para outras mulheres. Inclusive, pela conquista do direito de voto, então interditado às mulheres italianas.
A narrativa se constrói com doses de humor (às vezes resvalando para a caricatura), números musicais e ingredientes pop. A mistura funcionou muito bem junto ao grande público. Tanto que, no mercado peninsular, “Ainda Temos o Amanhã” superou outro fenômeno pop-feminista, a “Barbie” de Greta Gerwig.
“Palazzina LAF”, que conquistou dois prêmios de interpretação masculina (para seu diretor Michele Riondino, o de ator protagonista e o de coadjuvante para Elio Germano), além de melhor canção, “La Mia Terra”, para Diodato, é um drama político.
O jovem Caterino Lamanna trabalha numa fazenda, que vive fase decadente devido à proximidade de um polo siderúrgico. Ele está prestes a desposar Anna e os dois sonham em mudar-se para a cidade grande. Surge, porém, convite para que ele passe a vigiar trabalhadores que incomodam aos interesses da empresa Palazzina LAF (de laminação a frio). Lamanna pedirá para atuar no segmento onde atuam os trabalhadores mais reivindicativos. Lá, acabará descobrindo que a empresa, que julga ser um paraíso profissional, assemelha-se mais a um purgatório laboral.
Dos cinco candidatos ao Donatello de melhor filme, o público brasileiro viu os dirigidos por Garrone, Moretti e, neste momento, pode assistir ao “La Chimera”, de Alice Rorhwacher. “C’è Ancora Domani” deve estrear nas próximas semanas. Resta saber se alguma distribuidora adquiriu “Rapito” (nome original), de Bellocchio. Que, registre-se, tem além da fina carpintaria e da profundidade temática do maestro peninsular, um grande apelo social: a doutrinação religiosa. No caso, de uma criança judia, sobre a qual a Igreja despejou seu imenso poder ancorada no direito divino de transformar um inocente (de sete anos) em futuro propagador dos dogmas católicos.
Confira os vencedores:
. “Eu, Capitão”, de Matteo Garrone – melhor filme, diretor, produtor (Archimede, Tarantula, Pathé, RAI Cinema), fotografia (Paolo Carnera), montagem (Marco Spoletini), efeitos especiais (Laurent Creusot e Massimoi Cipollina), som (Daniela Bassani, Mirko Perri, Maricetta Lombardo e Gianni Palotto)
. “Ainda Temos Amanhã”, de Paola Cortellesi – melhor diretora estreante, melhor atriz (Paola Cortellesi), atriz coadjuvante (Emanuela Faneli), roteiro (Furio Andreotti, Giulia Calenda e Paola Cortellesi), Prêmio David da Juventude, Prêmio do Espectador
. “O Rapto”, de Marco Bellocchio – melhor roteiro adaptado (Marco Bellocchio e Susanna Nicchiarelli), melhor direção de arte (Andrea Castorino e Valeria Vecellio), melhor figurino (Sergio Ballo e Daria Calvelli), melhor trucagem (Enrico Iacoponi), cabelo e maquiagem (Alberta Giuliani)
“Palazzina LAF”, de Michele Riondino – melhor ator (Michele Riondino), melhor coadjuvante (Elio Germano), melhor canção (“La Mia Terra”, de Diodato)
. “Massimo Troisi – Laggiù Qualcuno mi Ama” (Lá Alguém me Ama”), de Mario Martone – melhor documentário
. “Anatomia de uma Queda”, de Justine Triet (França) – melhor filme estrangeiro
. “Adagio”, de Stefano Sollima – melhor trilha sonora (“Subsonica”)
. “The Meatseller”, de Margherita Giusti
. Prêmio de Trajetória – para a atriz Milena Vukotic, e para o compositor Giorgio Moroder,
. David Especial – para o jornalista e crítico Vicenzo Mollica