Gramado premia “A Transformação de Canuto”, parceria do Coletivo Mbyá-Guarani e Vídeo nas Aldeias, na festa do Gauchão
Foto: Premiados com o Prêmio Sedac/Iecine de longas-metragens gaúchos © Cleiton Thiele/Agência Pressphoto
Por Maria do Rosário Caetano, de Gramado (RS)
“A Transformação de Canuto”, inventivo trabalho que uniu o coletivo Mbyá-Guarani ao imprescindível trabalho do Vídeo nas Aldeias, foi o grande vencedor da Mostra Gaúcha de Longas-Metragens.
O filme, um híbrido de ficção e documentário, dirigido por Ariel Kuaray Ortega e Ernesto Carvalho, conquistou quatro dos mais importantes troféus do Gauchão: melhor filme, direção, ator (o menino Álvaro Benitez) e fotografia (Camila Freitas).
Além dos troféus Kikito e de prêmios em dinheiro oferecidos pelo Iecine (o Instituto de Cinema, mantido pela Secretaria de Cultura do Rio Grande do Sul), o longa gaúcho-pernambucano levou o Troféu Aquisição da EBC-TV Brasil, no valor de R$50 mil. E, para espanto geral, prêmio em serviços da CamaraCare, no valor de R$200 mil. A fotógrafa (e diretora de “Chão) Camila Freitas foi reconhecida por seu trabalho em “Canuto”. E agora poderá desfrutar de diárias e equipamentos (incluindo câmaras de última geração) da empresa que a premiou.
A festa do Gauchão, no campo dos filmes longos, desandou. Os recebedores de Prêmios Especiais — a produtora Aleteia Selonk e o animador José Maia — falaram demais e não dedicaram nenhuma atenção ao painel eletrônico que cronometrava o tempo (dois minutos para cada agradecimento). Falaram por quase dez minutos, cada um, e seus discursos não motivaram a plateia.
O ator Nelson Diniz, que fez jus ao Troféu Leonardo Machado, avisou que ultrapassaria o tempo previsto. Mas não cansou o público, pois, com muito charme, contou história vivida com o amigo e patrono do prêmio, o ator Leonardo Machado (1976-2018), quando filmavam, juntos, “A Oeste do Fim do Mundo” (Paulo Nascimento, 2013).
Léo tinha uma moto Harley Davidson, que amava. Emprestou-a a Diniz, que no filme interpretava um motoqueiro. As filmagens se estenderam por muitas semanas em locações no sul do Brasil e na Argentina.
Nelson Diniz se transformara no “dono” da moto. Léo seguia sem tocar em sua amada Harley. Quando as filmagens terminaram, ele pegou o veículo e confessou ao amigo. “Eu não aguentava mais de saudade dela, minha vontade de usá-la era imensa”.
“Por que você não me disse isso?” Ao que Léo retrucou: “durante as filmagens ela era sua, não minha”. O relato constituiu um dos momentos de maior emoção da noite, em tudo menos vibrante que a que laureara, dias antes, os Curtas do Gauchão.
Alexandre Matos Meireles, do Macumba Lab, Troféu Iecine Destaque, foi conciso em seu agradecimento. Mas a cerimônia já perdera o ritmo. Os únicos que não se excederam em seus agradecimentos foram os três indígenas, liderados por Ariel Kuaray Ortega.
Eles se mantiveram de olho no cronômetro. E um avisava ao outro que o tempo estava acabando. Ou “esgotado”. Como subiram ao palco quatro vezes, ao invés de desperdiçar, economizaram minutos preciosos. Foram, milagrosamente, bem sintéticos nos agradecimentos à consagração de “A Transformação de Canuto”, trama metalinguística criada para rememorar a história do indígena Canuto, que teria virado onça. As crianças da aldeia cresceram ouvindo esta “história acontecida” na comunidade Mbyá-Guarani, na região missioneira, divisa entre Brasil e Argentina.
No filme, os personagens se expressam em língua indígena, em português e espanhol. Três atores sociais interpretam Canuto (o menino Álvaro Benitez, premiado como melhor intérprete, Thiny Ramirez e Ariel Kuaray, na fase adulta). Até a cineasta argentina Lucrecia ”O Pântano” Martel aparece nos créditos como “consultora de roteiro”. E o desafiante “Canuto” começou sua trajetória de prêmios, que vão se multiplicando, no IDFA, o poderoso Festival de Documentários de Amsterdã.
O segundo longa mais premiado do Gauchão foi “Memórias de um Esclerosado”, codirigido (com Thaís Fernandes) por seu protagonista, o cartunista Rafa Corrêa, portador de esclerose múltipla. O filme conquistou, em maio último, o principal Troféu Calunga do Cine PE, em Recife.
O terceiro título mais premiado foi “Até que a Música Pare”, de Cristiane Oliveira: Kikito de melhor atriz, para a veterana Cibele Tedesco, integrante de grupo teatral de Caxias do Sul. Grupo que usa o “italian” (idioma que mistura o italiano dos imigrantes radicados na cidade, ao português). O outro reconhecimento foi à direção de arte, assinada por Adriana Nascimento Borba.
Dois filmes da competição não foram valorizados pelo júri oficial: o fabular “Infinimundo”, de Bruno Martins e Diego Müller, e o potente “Um Corpo Só”, de Cacá Nazário. O primeiro foi reconhecido pelo Júri Popular, que o escolheu como “o melhor da competição”
“Um Corpo Só”, politizado e vibrante registro da trajetória da Tribo de Atuadores Oi Nois Aqui Traveiz, foi, injustamente, ignorado. Merecia ao menos um Prêmio Especial, por narrar com pegada (e fotografia) de beleza convulsiva as idas e vindas de um dos mais importantes coletivos teatrais do país.
A noite gaúcha do Festival de Gramado somou à festa dos longas-metragens laureados, a entrega do Troféu Eduardo Abelin ao mais conhecido dos cineastas rio-grandenses, Jorge “Ilha das Flores” Furtado, de 64 anos.
O artista viveu, nos últimos meses, fortes emoções. Foi festejado com mostra retrospectiva no Festival de Punta del Este, no Uruguai, teve sua obra analisada no livro “Tudo Isso Aconteceu — Mais ou Menos”, do CinUSP (o cinema da Universidade de São Paulo) e, agora, é reconhecido no estado onde nasceu e que nunca quis trocar por nenhum outro. Fincou raízes em sua Porto Alegre na base do “daqui não saio, daqui ninguém me tira”.
E Furtado foi festejado com a “mão na massa”, num ano em que inscreveu seu nome em três projetos: o filme “Virgínia e Adelaide”, fruto de parceria com Yasmin Thayná, exibido na presença de suas protagonistas (Gabriela Corrêa e Sophie Charlotte), em première no Palácio dos Festivais; o épico roseano “Grande Sertão”, lançado há dois meses, e “O Auto da Compadecida 2”, ambos de Guel Arraes, com estreia prevista para o próximo Natal.
Ao agradecer o Troféu Eduardo Abelin, Furtado esbanjou síntese e bom-humor. Contou que, bem jovem, competiu pela primeira vez no Festival de Gramado, e sentou-se num cantinho, no chão, pois esse era o espaço destinado aos curta-metragistas. Ao ser chamado ao palco para receber um prêmio, estava tão nervoso, que seus músculos travaram. Não conseguia se levantar. Um colega o “destravou” na marra, com um tranco e “um vai-lá, cara!”.
Modesto, o cineasta não relembrou os calorosos aplausos gramadianos, que o saudaram por duas (pequenas) obras-primas: “O Dia em que Dorival Encarou a Guarda” e, principalmente “Ilhas das Flores”, o curta mais conhecido e festejado do país. Em 1989 — fui testemunha ocular!—, ele foi aplaudido, de pé e ao longo de dez minutos, por ter urdido ficção dramática (e irônica) sobre moradores de uma certa Ilha das Flores, que coletavam tomates num lixão.
“Virgínia e Adelaide”, mix de ficção e documentário, foi muito bem-recebido pelo público. Que o verá nos cinemas, a partir de março de 2025. Antes, o filme percorrerá o circuito de festivais. Para revelar aos Brasis, a história de duas mulheres (psicanalistas) pouco conhecidas —, a afro-ítalo-brasileira Virgínia Bicudo e a judia-alemã-brasileira Adelaide Koch.
Confira os vencedores:
. “A Transformação de Canuto”, de Ariel Kuaray Ortega e Ernesto Carvalho – melhor filme, melhor direção, melhor ator (Álvaro Benitez) e melhor fotografia (Camila Freitas)
. “Memórias de um Esclerosado”, de Thaís Fernandes e Rafael Corrêa – melhor roteiro (dos diretores em parceria com Ma Villa Real), montagem (Jonatas Rubert e Thais Fernandes), desenho de som (Kiko Ferraz), trilha sonora (André Paz)
. “Até que a Música Pare”, de Cristiane Oliveira – melhor atriz (Cibele Tedesco), direção de arte (Adriana do Nascimento Borba)
. “Infinimundo”, de Bruno Martins e Diego Müller – Júri Popular